Este texto de João Caraça, do Público de ontem (12:09:2014), é demasiado importante par desaparecer no labirinto dos links perdidos ou inacessíveis para a maioria (sem que isso signifique que concorde com tudo o que nele é escrito). Os realces são meus.
«Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, são as palavras com que Immanuel Kant inicia o seu monumental tratado publicado em 1781. 'A experiência é madre das cousas…' já lembrava o grande universalista Duarte Pacheco Pereira nos dias venturosos de 1508. Devemos pois considerar seriamente a experiência.
De facto, a experiência que estamos a viver nesta crise prolongada tem-nos ensinado e feito reflectir muito sobre o estado das coisas neste mundo. Um estado a que presentemente assiste uma razão muito impura. Porque não acredito que os males que nos afligem sejam apenas obra e graça dos Espírito Santos.
Fomos fracos. Ano após ano, década atrás de década de propaganda sistemática e envolvente levaram-nos a não querer ver nos Estados Unidos o centro de uma organização hegemónica quase-imperial – que ordenou o sistema-mundo durante a maior parte do século XX – e a não aceitar os europeus ocidentais como seus satélites. Não, nós éramos os ‘aliados’. Satélites eram os países do leste europeu em relação à União Soviética. E como num filme, assistimos de olhos esbugalhados à implosão do ‘império’ soviético, de cujo fragor ideológico a esquerda ainda não se recompôs. Porém a Rússia continua a desempenhar um papel de peso na cena internacional, embora com outros contornos.
Apelidar as nossas sociedades de capitalistas era coisa que parecia mal, que só podia significar apoio à causa do comunismo internacional, enfim, ao diabo! Era uma traição à ordem democrática do nosso mundo. E, no entanto, o capitalismo não é apenas um regime do poder económico como nos quiseram impingir mas sim uma verdadeira ordem social institucionalizada, tal como o feudalismo de outros tempos. Tanta foi a propaganda e a desinformação que ainda nos custa admitir que o sistema-mundo em que vivemos desde o século XVII e que tantas glórias (e desgraças) trouxe às Europas foi impulsionado pela acumulação consentida de capital. O capitalismo é um produto histórico, como todas as outras estruturas e instituições que os humanos criaram e utilizaram. Assim como teve um começo, terá um fim.
O problema é que o fim do capitalismo tem sido anunciado desde há mais de um século a esta parte. E ainda que a morte do capitalismo será o ponto de partida para uma sociedade mais justa e melhor. Mas nada disto parece ter acontecido. Ou seja, provavelmente teremos de deixar de pensar nestes termos.
A última transição histórica, do feudalismo para o capitalismo, demorou uns duzentos anos, dois longos séculos de grandes incertezas e complexidade. Ninguém adivinharia que uma sociedade capitalista ia surgir dos escombros do mundo feudal. Assim deveremos pensar hoje. O fim do capitalismo corresponde a uma época de fragmentação, de descoordenação, de retorno a um capitalismo selvagem que só ajuda à desordem instalada. O seu estertor não resulta de uma decisão colectiva em direcção a um futuro melhor. Antes fosse… pobre Ocidente, que inventou a história como base para compreender a transformação social, que agora vê a evolução não ter sentido e os valores que apregoou como universais serem pisados e abusados.
Um projecto de investigação plurianual coordenado por Immanuel Wallerstein, apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e cujos resultados são publicados neste mês de Setembro num livro com o título “The Time is Out of Joint” (O Tempo está Desconjuntado -- uma citação bem conhecida do Hamlet) ao analisar a evolução do sistema-mundo nos últimos quatrocentos anos conclui exactamente que o efeito das sucessivas e sistemáticas polarizações induzidas pelo funcionamento capitalista das nossas sociedades gerou uma situação de enormes incertezas e onde a complexidade impera.
É este o mundo em que vivemos. Porque durou tanto (ou tão pouco) esta situação a manifestar-se? O capitalismo, que no topo privilegia apenas um pequeno número de seres humanos, precisa para sobreviver da cumplicidade activa da sociedade que domina, como muito bem explicou Fernand Braudel. O Estado-nação moderno não criou o capitalismo, mas herdou-o. E o capitalismo triunfou porque conseguiu identificar-se com o Estado no processo de expansão das nações europeias pelo mundo. A acumulação indefinida de capital ‘casava’ bem com a noção de progresso iluminista de que ‘mais é melhor’.
Por outro lado, os Estados-nação liberais – impondo por intrínseca necessidade uma divisão dos poderes por diferentes órgãos de soberania – tornaram mais fácil a sua captura por parte do poder financeiro. O recurso periódico a eleições obriga os representantes políticos a apresentarem-se para escrutínio pelo povo todos os 4 ou 5 anos – criando a oportunidade de uma avaliação primária regular dos seus préstimos pelas elites do capital, que não se coíbem de interferir nas campanhas eleitorais quando os seus superiores interesses estão em causa. O prazo é curto: a rédea também.
O capitalismo adaptou-se bem à luta pela vida no mundo moderno. Recorre e provoca sistematicamente crises, no decorrer das quais se metamorfoseia e apura, eliminando as peles mortas. Mas é condicionado pelas oscilações e roturas que limitam o sistema-mundo.
Na primeira metade do século XX o centro do sistema-mundo deslocou-se de Londres para a costa leste dos Estados Unidos, no rescaldo das guerras mundiais que derrotaram a Europa. As sociedades capitalistas modernas americanizaram-se – a maior ou menor contragosto – e o capitalismo adoptou como figura central a grande empresa industrial, hierarquizada e integrada. Contudo, a dinâmica da sociedade industrial estava esgotada, já dera os seus frutos, e o mecanismo ‘gripou’, com a abertura da China à economia mundial e a nova demografia do globo, com as ‘crises do petróleo’ e as novas tecnologias da informação. O capitalismo financeiro reagiu, transmutou-se em ‘informacional’, tomou a liderança do sistema e continuou a fazer mais do mesmo: acumular até não poder mais, agora através da globalização das finanças, da deslocalização da indústria, dos direitos da propriedade intelectual e do crédito barato – uma ‘perestroika’ à americana. Os paraísos fiscais multiplicaram-se… e as grandes fraudes também.
E nós, crédulos, acreditámos na propaganda do grande sucesso americano, que tão somente ocultava a enorme ineficiência e desperdício da economia no centro do sistema-mundo. Alguém teria finalmente de pagar a factura: caiu em sorte (ou melhor dizendo, azar) aos suspeitos do costume: aos ‘aliados’ da Europa e aos mais ou menos dependentes latino-americanos e asiáticos. Iludidos ou não com o génio, o conhecimento e a audácia dos financeiros globais dos reinados de Bush, Clinton & Bush, os povos da periferia têm de pagar sempre, e com juros… a dívida da cupidez privada do centro deve ser irrevogavelmente transferida para a esfera da responsabilidade pública indígena. Está nos manuais. E a razão – impura – impera: a punição é devida por uma ‘vida acima das possibilidades’.
Só que o tempo joga contra o capitalismo financeiro: assim como o feudalismo foi destruído pelo aparecimento da artilharia, o capital sem fronteiras já foi vencido (embora se recuse a admiti-lo) pela introdução das armas nucleares, que funcionam como a garantia final da soberania territorial. Afinal, este é um segredo de Polichinelo: nenhuma potência nuclear vai admitir que as suas fronteiras sejam violadas através de operações que não controlem ou que as destabilizem. Por enquanto isso poderá não parecer evidente, pois a Índia e o Paquistão ainda não emergiram completamente do 3º mundo e as ogivas nucleares das forças inglesas são americanas. No continente europeu apenas os russos e os franceses possuem um poder nuclear autónomo (estes, graças ao general de Gaulle); o resto ‘repousa’ maioritariamente sob a égide da aliança atlântica ou mesmo na existência de bases militares americanas, como acontece em solo alemão. Mas o mundo não pára - talvez nesta perspectiva melhor se percebam os porquês da questão nuclear iraniana e porventura se entenda como a guerra no Médio Oriente traz um tão perigoso potencial de disrupção.
Creio que o capitalismo como sistema histórico encontrou o seu fim (o que não quer dizer que desapareça de hoje para amanhã) e que Francis Fukuyama se enganou redondamente ao não qualificar o seu “fim da história” como “o fim da história moderna”. A acumulação (pretensamente) infinita de capital financeiro intangível já não engana nem seduz ninguém – é apenas mais um Eldorado estafado cujos destroços atravancam o caminho do futuro. Futuro esse que aos olhos de hoje parece tão incerto e complexo como o ‘Destino’ que assombrava as mentes dos nossos antepassados de Quinhentos. A crise revela apenas a transição; a complexidade traduz a magnitude da transformação. Esta ‘crise’ é civilizacional. O período à nossa frente é de luta sem quartel. Há que estar equipados, intelectual, material e fisicamente para a travar.
No meio disto tudo, quem eram os Espírito Santos? Ninguém, tal como o romeiro da célebre peça de Almeida Garrett. Uns desenraizados, vivendo (estes sim) acima das suas possibilidades, apenas porque nos anos 1980 a CIA e um ex-embaixador americano entenderam que o governo português devia trazer uns cacos das antigas elites financeiras da paróquia para legitimar a reprivatização da banca. Sem controlo de qualidade. Claro que ia dar asneira. Uma má educação sai sempre cara.
O que poderemos então antever? O século XVII viu o aparecimento da ciência moderna – e todo um mundo novo começou a fazer sentido. Assim esperemos que aconteça, no decurso mais ou menos longínquo deste século. Só podemos aspirar a que a bifurcação por onde estamos a enveredar seja a de uma nova ciência e a de uma nova educação que nos voltem a encantar com o que descobrirmos no universo e na vida.»
,
1 comments:
O Joao, meu velho e fraterno amigo, é um homem extremamente lúido, culto e com grande capacidade para a visão estratégica, prospectiva. Considero-o um dos nossos melhores pensadores.
Enviar um comentário