3.11.18

Calem-se: o povo é quem mais ordena



«1. Há uma conspiração de extrema-direita a nível internacional, muitíssimo bem pensada, bem planeada e que vem sendo executada passo a passo. Steve Bannon, ex-guru de Trump e despedido por ser demasiado inteligente e incompreensível para aquela fraca cabeça ruiva da Sala Oval, é o rosto mais visível, mas não único. Vestem-se de jeans, recuperam as poses do Village dos anos setenta, argumentam com algoritmos, alimentam o seu tumor no território fértil das redes sociais e no fanatismo religioso das igrejas evangélicas (que, no seu íntimo, desprezam profundamente) e pastoreiam o seu rebanho no novo lumpen-proletariado que a globalização criou nas sociedades afluentes. O medo de um futuro onde as pensões deixaram de estar garantidas, onde o vizinho moreno passou a ser um potencial terrorista, em que qualquer emigrante será uma ameaça ao Estado social, onde a máquina vai substituir o operário e onde a ordem natural das coisas será para sempre subvertida é o seu território de caça. E porque tudo isto é demasiado confuso e demasiado aterrorizador para ser enfrentado, a legião massificada dos aterrorizados e confusos refugiou-se na zona de conforto de um Deus capturado por vendilhões e das redes sociais servidas à medida dos seus medos, das suas raivas, das suas frustrações e dos seu ódios irracionais. E à exacta medida dos planos dos ideólogos contra a liberdade e a democracia. Dos indisfarçáveis fascistas. Que já não precisam de militares, nem de golpes nem de noites de facas longas. O Facebook e o WhatsApp servem-lhes tudo de bandeja e levam-lhes as ovelhas às mesas de voto, como cordeirinhos dóceis ao matadouro.

A propósito disto, e de um texto de que adiante falarei, lembrei-me de um belíssimo e perturbante filme de James Ivory, de 1993, baseado no livro de Kazuo Ishiguro, Man Booker Prize, “The Remains of the Day” (“Os Despojos do Dia”, na tradução portuguesa”). No filme, Lord Darlington (interpretado por James Fox) é um aristocrata inglês que organiza, no seu mannor de Darlington Hall, um jantar para um dignitário nazi, em 1935. Darlington, que depois seria exposto como simpatizante nazi, estava sobretudo incomodado por ver que as duas maiores potências europeias estavam à beira de ser arrastadas para uma guerra entre elas, quando as ruling classes de ambas tinham interesses comuns, que estavam a ser dinamitados pela demagogia insuflada nas classes populares e que, de forma trágica, tinham levado ao poder na Alemanha um obscuro cabo chamado Adolf Hitler — um Bolsonaro com 80 anos de avanço. E, para melhor ilustrar o seu ponto de vista, a certa altura, Lord Darlington, à conversa com um amigo, chama o seu buttler (a figura central do filme, num magistral desempenho de Anthony Hopkins), e pergunta-lhe: “Tu sabes o que é a inflação?” E ele responde: “No, Sir”. E, fazendo um gesto, despedindo-o, Darlington comenta para o amigo: “Estás a ver? Este tipo, que não sabe o que é a inflação, tem direito a um voto, tal e qual como eu!”.

Poderíamos chamar a isto o fardo das elites perante a democracia: um homem, um voto. Um princípio essencial, aliás, à natureza da própria democracia. Noutro contexto, o do colonialismo, Kipling falou do “fardo do homem branco” — qual seria o de “civilizar” os povos colonizados. Pois, a história deu as voltas que deu, muitas erradas e trágicas, outras ocasionais e curiosas, e é certamente ocasional e curioso que, por exemplo, a maior democracia do mundo, hoje, seja a Índia — onde Kipling situou o fardo do homem branco. O que isto nos parece dizer é que mesmo quando erradas nos seus valores — que, para sermos justos, deveremos sempre julgar no seu contexto de então e nunca no seu contexto actual — as elites, bem ou mal, cumpriram e cumprem um papel na consciência colectiva dos povos. Sendo um privilégio por origem, devem ser um fardo e um dever por obrigação. Demitindo-se de intervir, por temor ou por desfastio, são um privilégio sem sentido e sem razão de ser. Todos os que tivemos a sorte de estudar, de ler, de aprender, de reflectir, de saber “qual a cor da liberdade”, como escreveu Jorge de Sena, somos tributários do Infante D. Pedro, morto em Alfarrobeira. Morto pela cegueira da turba ignara, incendiada pela inveja dos medíocres, dos que alimentariam depois as fogueiras da Inquisição. Porque, meus caros amigos: quem queima livros não se liberta — suicida-se.

Bem, o dito texto é da autoria de João Miguel Tavares, o qual vai ficar felicíssimo por eu citar o seu nome, pois que vive à procura de quem lhe dê importância e relevância. Mas vale a pena ultrapassar isso porque esta citação o justifica: “Nós, as elites, não percebemos nada de nada... As elites artísticas, intelectuais, jornalísticas, têm de meter na cabeça de uma vez por todas que a sua influência sobre o povo, na hora do voto, é nula. Que os seus poderes de mediação e de persuasão, na era das redes, se evaporaram de vez”. Eu não sei o que mais me dá vontade de rir — ou de sorrir de tristeza. Se é ver alguém auto-arvorar-se em elite — uma daquelas coisas que, quando se é, não precisa de ser dita, e quando se diz, é porque não se é. Se é vê-lo pensar que descobriu a pólvora, com o triunfo da multidão das redes sociais sobre as “elites” — isto é, aqueles que leram, que não se contentam em ser informados pelas “verdades” das redes sociais, que reflectiram — coisa sobre a qual (agora, peço eu desculpa) venho escrevendo há anos, com a qual José Pacheco Pereira começou por ser grande entusiasta antes de arrepiar caminho, e de que José Manuel Fernandes, menos inteligente, ainda continua entusiasta, e que Umberto Eco arrasou há tempos num texto demolidor. Ou, enfim, por vê-lo ir a correr, de corda ao pescoço, juntar-se à multidão das redes sociais a tempo de apanhar o último vagão do comboio, proclamando, ofegante: “Eu estou convosco! Eu, membro da elite bem pensante, compreendo-vos. Compreendo o Bolsonaro, o Orbán, a Le Pen, o Salvini, o Trump, tudo, todos! Vocês são o povo e a função das elites é estar ao lado do povo”. É o pensamento profundo de Lord Darlington, drasticamente invertido por este nosso pensador profundo. Só falta querer retirar o direito de voto àqueles, como eu, que sabem o que é a inflação mas não frequentam redes sociais.

2. O juiz Sérgio Moro, o herói da Lava Jato, o Carlos Alexandre tropical, e que presumo que seja também um dos ídolos de referência de João Miguel Tavares, não resistiu ao convite de Bolsonaro para ser ministro da Justiça do seu governo. Com isso, não fez mais do que arrancar uma máscara colada com cuspo. Primeiro, mostrou que entre a magistratura e a política, a sua verdadeira ambição era a política e a primeira serviu-lhe de trampolim para a segunda. Depois, mostrou que não foi por acaso que, poucos dias antes do impeachment de Dilma, revelou uma escuta telefónica de uma conversa entre ela e Lula, sem qualquer relevância processual e em clara violação da lei, com o intuito claro de influenciar a votação do Congresso contra Dilma — assim como depois, a poucos dias da primeira volta das presidenciais, em nova e descarada violação do segredo de justiça, revelou parte da delação premiada do ex-ministro de Lula, Antonio Palocci, com efeito determinante na votação do candidato do PT. Que a sua mulher tenha vindo depois apelar abertamente ao voto em Bolsonaro, já pouco podia espantar: este é o juiz que, sem nenhuma prova directa e baseado apenas em delações premiadas (isto é, testemunhos comprados), sozinho, investigou, acusou, despachou para julgamento, julgou, condenou e meteu na prisão o homem a quem todas as sondagens davam larga vantagem para voltar a ser Presidente do Brasil. Até pode ser que Lula seja culpado de tudo o que o acusam, o que ainda está por demonstrar à luz das normas de um Estado de direito, tal como eu o entendo. Mas o mínimo que se exigia a Sérgio Moro é que tivesse alguma noção de decoro e contenção nas suas ambições.»

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