«Não vou debater de novo as razões específicas desta inflação e a desadequação da terapia que lhe está a ser aplicada. Claro que se a dose for de tal forma forte que provoque uma recessão acabará por resultar. A questão é o estado em que fica o paciente. Como na medicina, quem aplica uma terapia ignorando os seus efeitos secundários pode matar o paciente da cura. Mas acaba com a doença, isso é seguro.
As subidas das taxas de juro aconteceram na Turquia, em Inglaterra e, claro, nas economias abrangidas pelo BCE. Das 44 reuniões de política monetária deste mês, metade dos bancos centrais não mexeu nos juros (o Japão tem sido especialmente cuidadoso), iniciando ou prolongando uma pausa. Seis até decidiram cortá-las.
Em junho, a taxa de inflação em Espanha abrandou acentuadamente para 1,9%, abaixo do objetivo do BCE. Ajudaram medidas como introdução de um limite máximo para o preço do gás na produção de energia, os limites aos aumentos das rendas, a tributação dos lucros excecionais e outras medidas que não cabem na ortodoxia que tomou conta das nossas televisões, onde, ao contrário do que acontece noutros países, o debate económico é ausente de qualquer pluralismo e de um dogmatismo aflitivo.
Olivier Blanchard, ex-economista chefe do FMI, defendeu, em novembro passado, que os bancos centrais revissem a sua meta de inflação para 3%, evitando custos económicos e sociais desnecessários. Quem o defendesse no espaço mediático seria cruxificado ou considerado um ignorante. Felizmente, há mais diversidade de opiniões entre economistas do que aquela que o espaço público nacional oferece.
Não é só António Costa, que valoriza o desvaloriza o papel dos salários na "espiral inflacionista" conforme o jeito que lhe vai dando (e que, no Estado, aplica as preocupações que contesta a Lagarde), a dizer que o aumento das margens de lucro contribuíu decisivamente para a inflação depois da pandemia. Foram os técnicos do BCE que, num retiro de março, numa pequena localidade no Ártico, mostraram que as empresas estão a defender-se (ou mesmo a lucrar) da inflação, enquanto trabalhadores e consumidores pagam a conta. No entanto, apesar do BCE reconhecer que os salários não têm contribuído significativamente para a inflação, Christine Lagarde referiu, numa conferência de imprensa, em fevereiro deste ano, 14 vezes os salários e apenas uma as margens de lucro. E voltou à carga em Sintra, na semana passada.
Uma pesquisa do FMI revelou que os aumentos nos lucros representaram quase metade do aumento na taxa de inflação pós-pandémica da zona do euro. No mesmíssimo encontro em Sintra em que Lagarde fez declarações “impopulares” (a expressão tem um elogio implícito na imprensa), a vice-diretora do FMI até defendeu, perante as evidências de “greedflation”, que “se a inflação cair rapidamente, as empresas devem permitir que suas margens de lucro – que dispararam nos últimos dois anos – diminuam e absorvam parte do aumento esperado nos custos de trabalho”.
Ou seja, é possível acomodar o aumento dos salários à inflação sem aumentar o preço, não contribuindo para uma espiral inflacionista que não resulta da pressão da procura. Basta partilhar o que o ganho que está concentrado. O que não faz qualquer sentido é pedir aos patrões para explicarem aos seus trabalhadores que, apesar dos lucros extraordinários que lhes chegam, não aumentam salários para ajudar no combate à inflação. É politica, social, moral e economicamente insustentável.
Se a insistência de Lagarde não se baseia em qualquer evidência e ignora vários pareceres técnicos, quer dizer que é política. Como tudo o que Lagarde diz. A presidente do BCE é uma política de carreira que teve, como o seu vice Luis de Guindos, um papel central em governos que impuseram a austeridade, a “contenção” salarial e a perda de direitos sociais e laborais como receitas para ultrapassar crises cíclicas. Têm-se especializado em aproveitar todos estes momentos para acentuar a transferência recursos de baixo para cima e enfraquecer a capacidade negocial de sindicatos e trabalhadores. Porque havia de ser diferente agora?
Nesta união monetária, o emprego e o salário são as únicas variáveis para controlar a inflação. O que quer dizer que o programa para nos protegerem da inflação é fazerem-nos perder salário real ou atirarem-nos para o desemprego. Um conveniente programa político que garante que só há prosperidade se não for partilhada com os trabalhadores. Se for, é uma catástrofe para os trabalhadores.
Apesar da independência do BCE ser falsa (é uma estrutura política dirigida políticos não eleitos que impõem políticas não sufragadas com base em opções ideológicas), ela tem, pelo menos teoricamente, dois sentidos. O BCE define a política monetária, mas não tem autoridade para determinar as políticas sociais e económicas dos Estados. Ainda mais sem qualquer evidência técnica. Depois, há diferenças entre os Estados. O aumento das taxas de juro não tem o mesmo impacto direto nos cidadãos na Alemanha, onde a taxa fixa é dominante, e em Portugal, onde a taxa variável é hegemónica. Qual Maria Antonieta, Lagarde respondeu: “são escolhas, é da vida”. Não é a insensibilidade social que me incomoda, porque ela faz parte das suas mais profundas convicções morais. É a ignorância. Os portugueses condenam-se às taxas variáveis porque o mercado bancário e o aperto na hora da “escolha” a isso os obrigam.
Em Portugal, o efeito do aumento das taxas de juro é uma redução drástica e dramática do rendimento disponível em plena crise inflacionista. Isto, num país em que os salários aumentam há duas décadas abaixo da produtividade (com um pequeno intervalo durante a pandemia). Cortar mais nos salários, integrado numa Europa de fronteiras abertas, é ver fugir para outros países a mão de obra qualificada que nos resta, continuando a alimentar o desequilíbrio que reduz as escolhas que poderemos fazer no futuro. Por isso, não faz sentido dizer a todos os Estados para acabarem com os apoios, como se os impactos fossem os mesmos perante a mesma decisão e os apoios não fossem medidas corretivas para conseguir, no mínimo, resultados semelhantes.
Tudo isto são minudências na bolha em que Christine Lagarde vive. Não me refiro apenas à bolha do privilégio, apesar de um salário anual de 427 mil euros (que aumentou 12% na última década, com uma baixa inflação, mostrando que a contenção salarial é sempre para os outros) garante um confortável distanciamento em relação aos problemas que se enfrentam e às soluções que se propõem. Refiro-me ao alheamento democrático. A falsa independência dos bancos centrais permite-lhes não ter de ponderar os efeitos económicos e sociais das políticas que defendem. É por isso mesmo que as correntes neoliberais, que nunca foram especialmente democráticas, lhes querem sempre reforçar os poderes. É tão bom governar sem povo.»
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