28.7.18

Mati ou o fim dos paraísos da nossa infância



«Para os quatro milhões de habitantes de Atenas, a bela costa ática sempre foi uma fonte de conforto. Praias sem fim, algumas coroadas por ricas florestas e águas cristalinas. Não admira por isso que tanta gente, quando Atenas sofreu nos anos 50 e 60 um rápido processo de urbanização anárquica, tenha decidido comprar um bocado de terreno perto do mar. Era um oásis para a classe média.

Ao caminhar entre carros e casas destruídas pelo fogo na vila de Mati, à beira mar, com o cheiro perturbador a plástico e madeira queimada a encher-me as narinas, é-me difícil reconhecer os locais que visitei tantas vezes na infância. Uma tia minha tinha uma pequena casa no porto vizinho de Rafina e no início dos anos 80 passei lá uma série de fins de semana com os meus primos, indo dar um mergulho a Mati, o sítio mais bonito ali perto. Era o nosso paraíso de verão, um tempo cheio de gelados, castelos de areia e o aroma de melancias frescas servidas em caixas de plástico. Mais tarde, ia para lá quando não tinha aulas, em saídas com amigos para um dia de praia.

Trinta anos depois, ao descer as mesmas estradas, percebo que quando somos novos passa-nos muita coisa despercebida. O cenário idílico de casinhas nos pinhais implica que o Governo não teve qualquer controlo sobre o desenvolvimento urbanístico na zona. As casas mais pequenas são provavelmente clandestinas. As maiores, com mais de um piso, têm normalmente licença de construção — dada sabe Deus como. Os bares perto ou sobre o mar são completamente ilegais. As pessoas morreram queimadas por não poderem atravessar as ruas estreitas; um carro, abandonado no meio do pânico, foi suficiente para bloquear toda a circulação. As pessoas morreram queimadas pelos mesmos pinheiros de cuja sombra gozavam nos dias quentes de verão. Foram o rastilho para o fogo que destruiu as suas casas. Tudo aconteceu tão depressa que só os primeiros a fugir, ou que conseguiram chegar à praia, sobreviveram. Alguns, como o grupo de 26 pessoas encontradas mortas num campo, não conseguiram passar, por não haver um caminho sem uma casa ou um bar a bloqueá-lo.

À medida que são identificados os cadáveres dos mortos pelo fogo ou por afogamento (alguns tentaram afastar-se a nado das chamas) e as famílias podem por fim chorar os seus, as conversas na Grécia viram-se outra vez para as causas desta tragédia insuportável. A mesma conversa de 2007, quando 77 pessoas foram mortas pelo fogo no Peloponeso. Este foi o segundo desastre natural em Ática, em menos de um ano: 23 pessoas perderam a vida em novembro numa cheia na cidade de Mandra a oeste de Atenas.



Os dois casos estão relacionados? Para o perceber, temos de ter presente o que é chamado ‘realidade grega’. Tem tudo que ver com a forma como Atenas e a região da Ática se desenvolveram nos últimos 50 anos, tornando-se uma velha cidade-estado, abrigando mais de 40% da população do país. Nos anos 50 e 60, a parte metropolitana de Atenas cresceu rapidamente. Engoliu aldeias outrora pacíficas nos seus arredores, que rapidamente se tornaram subúrbios. Rios e ribeiras desapareceram, cobertos de cimento e construções. Florestas foram arrasadas e substituídas por localidades. No final dos anos 60, princípios da década de 70, durante a ditadura, uma construção monstruosa germinou por todo o lado. Se visitarmos uma pitoresca ilha nas Cíclades e virmos um monstro de betão entre casinhas delicadas, foi provavelmente construído nesse período. A junta deixou plantar casas prefabricadas nas matas, mesmo em pequenos terrenos. E novas aldeias cresceram em volta de Atenas, subúrbios da classe média-alta na linha de costa de Ática, para sul e para leste, bairros para os pobres a oeste e na ilha de Salamina.

E então entrou o Estado. Na primeira metade dos anos 80, um ministro do Ambiente visionário, Antonis Tritsis, tentou organizar o que tinha tão obviamente sido construído sem qualquer plano diretor. Milhares de casas clandestinas foram legalizadas, depois de pagarem multa; a ideia era que depois disso não haveria nem mais uma legalização. Era uma espécie de última oportunidade. E durante uma série de anos, o Conselho de Estado, o supremo tribunal administrativo grego, manteve essa ‘linha vermelha’ em todas as decisões.

A construção clandestina parou? Infelizmente, não. Nos anos 90 e na primeira década deste século, a era da abundância na Grécia, a urbanização dos arredores de Atenas continuou, sem licenças nem planos urbanísticos. As autoridades reclamaram sempre contra a falta de pessoal, incapazes de travar a situação. Pelo contrário: governos consecutivos deram pequenos brindes aos seus eleitores — como ligações à rede elétrica ou ao abastecimento de água, mesmo em casas clandestinas. O mesmo fizeram os presidentes de câmara, que construíram estradas e algumas infraestruturas básicas nos bairros clandestinos. E à medida que as pessoas enriqueciam, mudavam-se do centro de Atenas para esses subúrbios que antes só recebiam veraneantes. Por isso o que era temporário tornou-se permanente.

Depois, em 2011, nos primeiros tempos da crise económica, uma nova lei tornou possível de novo a legalização dos edifícios clandestinos, estabelecendo uma nova ‘linha vermelha’. Seguiu-se-lhe uma nova lei em 2013 e outra ainda em 2017. Cerca de um milhão de edifícios foram legalizados num período de sete anos — mais de cem mil no leste de Ática, onde ficam Mati e Nea Makri.

Mas ainda assim, as três leis excluíam duas categorias: estruturas ilegais na floresta e na costa (ao contrário de Portugal, 80% da floresta grega são propriedade do Estado). Agora, sob pressão da troika, o Ministério do Ambiente está a recensear as florestas em todo o país (como forma de combater a corrupção). As autoridades locais, no entanto, podem estabelecer os limites de bairros ilegais dentro das matas, de maneira a ficarem de fora do recenseamento. O ministro tem agora nova lei na calha, estabelecendo alguns critérios para a legalização de uma série desses núcleos habitacionais. Portanto o ciclo de expansão urbanística anárquica vai continuar.

Deixei Mati com um gosto amargo na boca. As alterações climáticas estão a afetar a intensidade dos ventos, da chuva, das vagas de calor. Protegermo-nos vai ser cada vez mais difícil e complicado. As pessoas tendem a apontar o dedo ao Governo. Mas lá no fundo, sentimos que os nossos paraísos de infância podem ter deixado de ser seguros.»

Giorgos Lialios (jornalista grego)
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