29.9.18

O gosto dele



Pedro Mexia no Expresso, Revista, 29.09.2018:

«Faz em breve dez anos que João Bénard da Costa deixou a Cinemateca Portuguesa, por motivos de saúde que levariam ao seu falecimento poucos meses depois. Pergunto-me às vezes como o lembrará quem não o conheceu, quem nunca o viu e ouviu a apresentar uma sessão, quem nunca comprou um jornal por causa dos seus textos, quem nunca o identificou com o cinema.

Havia e há outros historiadores, outros críticos, outros programadores, e consigo pensar em quem soubesse tanto quanto ele; mas poucos fizeram tanto, poucos tinham uma personalidade tão carismática, e nenhum escrevia tão bem. Uma prosa totalmente idiossincrática que combinava erudição, graça, elegância, malícia, a autobiografia e a divagação, a evocação e o enigma. Os textos durarão muito mais do que a memória do homem João Bénard da Costa, como é fatal que aconteça. Ele esteve em todos os lugares onde se afirmou o cinema de qualidade na segunda metade do século passado, os cineclubes, a Gulbenkian, a Cinemateca, e haverá quem recorde esse legado. Mas os textos ficarão quando essa memória se tiver esbatido, textos que são como que uma aula intimista, um entendimento profundo entre uma comunidade invisível que acredita também no que é visível.

Claro que, entretanto, a sensibilidade mudou, como mudou a experiência cinematográfica. O cânone fragmentou-se, o papel da crítica desvaneceu-se, perdeu-se a ligação à sala escura, a televisão e as novas plataformas são frequentemente mais estimulantes do que o cinema, e assim por diante. Tudo o que era sólido se desfez no ar. Para dar um exemplo elucidativo: há agora quem argumente que o cinema de Ingmar Bergman irá perder progressivamente importância, ou até que já perdeu. Um crítico tão sofisticado quanto Jonathan Rosenbaum defendeu essa tese, baseado em suposições “sociológicas” espúrias e em rejeições “ideológicas”. Mas se Ingmar Bergman (que para tantos significou um enorme assombro estético e existencial) se tornasse irrelevante, isso diria mais sobre a obra de Bergman ou sobre a época em que Bergman deixasse de ser pertinente? Não quero forçar a comparação, que não é bem uma comparação, embora ainda há dias tenha relido o extraordinário ensaio de águas profundas que Bénard escreveu para o catálogo Bergman; o que quero dizer é que há sempre maneira de desvalorizar alguém acentuando-lhe a condição histórica, da qual, aliás, ninguém está excluído. Bergman poderá parecer menos óbvio quando a angústia metafísica, o rigorismo moral, a inquietação sexual ou o descontentamento burguês não sejam assuntos tão urgentes como já foram, mas é difícil imaginar que algum desses motivos desapareça por completo, ao ponto de tornar Bergman ilegível.



O mesmo se diga de João Bénard. Claro que ele foi, somos todos, um espectador situado. Um espectador de uma época de mudança, formado numa “escola do olhar” que geralmente definimos como “cinéfila”, “autorista”, a “escola dos Cahiers”. Essa perspectiva não está reservada a quem era jovem quando os “Cahiers du Cinéma” apareceram nas bancas, mas claro que ajuda ter tido sido jovem nessa altura, tal como ir a Paris alargar horizontes em tempos de ditadura, ou conviver com Henri Langlois, o mítico director da Cinemateca Francesa. A “cinefilia” é coisa de cine-fils, de “filhos do cinema”, como escreveu Serge Daney, e tem pouco a ver com “gostar do cinema”, uma inclinação mais universal. O cinéfilo vive o cinema. E a cinefilia de Bénard é, nesse aspecto, especialmente densa. Porque se, por um lado, o cinema parece um sistema auto-suficiente, de modo que os filmes fazem mais alusões a outros filmes do que à vida lá fora, sabemos bem que a divisão que Bénard fazia entre “os filmes da minha vida” e “os meus filmes da vida” suponha um cinema que não se distinguia da biografia, bem como uma biografia a que se emprestava uma aura “cinematográfica”.

O “autorismo” correspondeu ao momento final da autonomização do cinema enquanto arte, a “sétima arte” teorizada pelo crítico italiano Ricciotto Canudo. Digamos que o “autorismo” completou o alargamento, em extensão e intensidade, dessa legitimação artística. Antiga “curiosidade de feira”, que ninguém sequer pensava em preservar, o cinema ganhou prestígio bastante cedo, ainda no mudo, mas numa faixa muito específica da produção internacional: os “mestres alemães” e os “mestres russos”, a gramática de Griffith ou a sintaxe de Eisenstein; mas foi a geração pós-1945 que definiu o cineasta como “autor”, ainda que alguns cineastas em causa rejeitassem tal reivindicação (como filmou a cena tal?, perguntaram a John Ford; “com uma câmara”, respondeu o homem da pala). Além do mais, a geração dos “Cahiers” (e da “Positif”, do outro lado da barricada) defendeu o cinema clássico e pós-clássico americano, até então visto com suspeita política ou considerado fatalmente “comercial”. A “desfaçatez” com que Rohmer, Chabrol ou Truffaut estudaram Hitchcock como um artista sério, como um artista maior, tornou-se, vista de hoje, a desfaçatez de quem negou essa evidência.

A “escola dos Cahiers” tinha algumas particularidades que encontramos nos textos de João Bénard. Particularidades como a forte componente literária tanto do universo de referências como da estética da prosa; o gosto do superlativo que faz, como queria Godard, de um belo filme “o mais belo dos filmes”; uma apetência por genealogias e homenagens; uma exaltação da beleza física; um certo ar de grupo de amigos, cujo talento também justifica sermos amigos deles; ou uma noção da autoria que leva a que se diga que os autores “maiores” não fazem filmes “menores” (lembro-me de Bénard me ter censurado a minha reticência face a esse mandamento, a propósito de um Visconti que não me entusiasmava). Quero dizer com isto que há um modo “geracional” de entender o cinema, e que duvido que a geração a seguir à minha ainda sinta quaisquer afinidades com essa abordagem, até na medida em que a recepção do cinema parece encaminhar-se para um tribalismo com “agenda” ou para a “cientificidade” académica, temperaturas muito altas ou demasiado baixas, próprias de pessoas que continuam a ter relações empenhadas com determinados objectos fílmicos mas não tanto com essa mitologia para alguns embaraçosa a que se chamou “o cinema”.

Talvez seja preciso cultivar uma certa empatia com João Bénard para se ser um incondicional, e a empatia é, como sabemos, um sentimento com insuficiências e contradições. Em todos os textos de Bénard o cinema é o cinema dele, com as exclusões e os preconceitos a que ninguém é imune. Mas esse capricho de injustiça só ocasionalmente tinha a ver com o desconhecimento (ninguém viu os filmes todos, ninguém gosta de todos os cineastas e de todos os géneros); a autoridade de Bénard era a de quem “estima” a arte porque dela “sabe”, para retomar os termos camonianos. Ver muito cinema é indispensável; mas acresce a uma cultura vasta, a um gosto educado, a um juízo esclarecido e a uma intuição aguda, traços de uma certa concepção aristocrática das artes, velha como o mundo. O tocante documentário dirigido há uns anos por Manuel Mozos sobre o antigo director da Cinemateca é desse ponto de vista exemplar. Veja-se por exemplo a sequência em que a descoberta do cinema é “explicada” através de um álbum de pintura dos museus espanhóis, oferecido ao menino João e, em caso de mau comportamento, guardado num patamar mais alto, inacessível. O cinema aparece nessa magnífica “cena primitiva” como um prolongamento das outras artes, e sobretudo da pintura, mas também como espanto, oferta, castigo e alegria. Bénard não é apenas o crítico-conhecedor, mas alguém que entende, gosta e transmite. Depois, é justo admitir, o acto de dar a conhecer confere uma certa distinção (ouvi-o dizer: “Quando eu morrer ninguém vai saber isto”), de modo que o crítico se torna um príncipe amigo das artes, um monarca que não promulga constituições mas as “outorga”.»
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