20.7.22

A incerteza é o (novo) normal

 


«Dizem que os diagnósticos estão todos feitos, mas Portugal não é fácil de entender.

Poucas economias na Europa tiveram oscilações tão marcadas no seu passado recente. Nos últimos 15 anos do século XX, a economia portuguesa foi das que mais cresceu na União Europeia (UE). Nos primeiros 15 anos deste século, só a Grécia e a Itália tiveram um desempenho pior. No período pós-austeridade, Portugal voltou a convergir com a média. Durante a pandemia, só Espanha teve uma queda do PIB tão grande. Agora, a Comissão Europeia prevê para a economia portuguesa em 2022 o maior crescimento do PIB em toda a UE (6,5%).

A leitura sobre os desenvolvimentos recentes não é consensual. Para uns, o forte crescimento esperado para este ano é apenas o reverso da quebra da actividade económica durante a pandemia. Para outros, é um sinal de regresso a uma trajectória de convergência com a média da UE, assente não apenas no turismo, mas também no crescente interesse das empresas multinacionais pelo investimento em Portugal.

A ausência de consenso não se aplica apenas à actualidade. Os economistas ainda não se entenderam sobre os factores que explicam o contraste tão acentuado entre o período antes e depois de 2000. Uns acusam os governos de não terem sabido lidar com a entrada no euro, adiando as reformas necessárias para viver sob o novo regime. Outros acusam o euro em si e as disfunções institucionais da UE, que tornariam impossível a coexistência na mesma zona monetária de economias tão distintas como Portugal e Alemanha. Há também quem interprete este período como uma mera fase de ajustamento da economia portuguesa face aos choques da liberalização financeira e do comércio mundial, dada uma estrutura produtiva pouco preparada para a globalização.

Mesmo temas que foram em tempos consensuais vão deixando de o ser. Exemplo disso é a educação: durante décadas concordámos que o atraso histórico das qualificações em Portugal era o factor decisivo para o subdesenvolvimento do país em várias áreas; hoje, os dados sobre a educação da população portuguesa não permitem ter tantas certezas sobre o seu papel actual. Em trinta anos, a taxa de abandono escolar precoce caiu de 50% para menos de 6%. Em 2021, a proporção de jovens entre os 30 e os 34 anos que concluíram o ensino superior é já maior do que a média da UE. Se as baixas qualificações ainda dominam nas gerações mais velhas, os níveis e a qualidade de educação dos mais jovens parecem ser hoje um factor de atracção de investidores estrangeiros para o país. Mas são também um problema: a estrutura produtiva pouco sofisticada não permite aproveitar as competências disponíveis, forçando milhares de jovens com formação superior à emigração. Não existe consenso sobre a melhor forma de gerir estas contradições.

Educação, ciência, tecnologia, saúde e protecção social são algumas das áreas onde Portugal mais evoluiu nas últimas décadas, apesar da quase estagnação económica desde a viragem do século. No entanto, a pandemia tornou evidentes as enormes fragilidades sociais que persistem no país: as desigualdades sociais no acesso à saúde e à habitação, as assimetrias territoriais profundas no desempenho escolar, a desprotecção de centenas de milhares de trabalhadores precários e informais face ao risco de desemprego, ou a fragilidade de segmentos relevantes de uma população cada vez mais idosa.

Ao contrário do que se diz, os diagnósticos não estão todos feitos. É verdade que existem elementos estruturais persistentes, uns que nos acompanham há muitas décadas, outros mais recentes: a fragilidade do tecido produtivo, a descapitalização das empresas, o endividamento externo, o desordenamento do território, as desigualdades sociais e territoriais, a falta de confiança nas instituições, o envelhecimento demográfico, a vulnerabilidade face às alterações climáticas. Mas os desafios não são sempre os mesmos, seja porque a realidade do país se vai alterando, seja porque as mudanças globais colocam novos desafios e novas oportunidades a uma economia cada vez mais ligada ao resto do mundo.

Lidar com tanta instabilidade e incerteza exige diagnósticos rigorosos e actualizados, políticas que tenham em conta a complexidade e a instabilidade do mundo em que vivemos, e uma sociedade atenta e exigente, que pense o futuro de Portugal para lá da espuma dos dias e das análises superficiais.

Nem sempre é fácil. Faltam recursos e incentivos no Estado, nos partidos políticos, nas universidades e na comunicação social para focar as atenções nos desafios estruturais do país e nas medidas de política pública adequadas para lhes responder. Mas aqui, como noutras áreas, o caminho faz-se caminhando. Façamos do debate parlamentar sobre o “Estado da Nação” o momento anual para uma reflexão aberta e sustentada. Isto não substitui o confronto entre opções: continuaremos a divergir nos valores e nas convicções que temos sobre a evolução do mundo, logo sobre as prioridades e as políticas a adoptar. Mas pode ser que assim a qualidade das escolhas saia reforçada.»



P.S. - O relatório «O Estado da Nação e as Políticas Públicas 2022» já está disponível AQUI.
.

0 comments: