4.10.23

Quando o secular rentismo expulsa a boa moeda

 


«Pelo menos desde o fim da pandemia que a crise da habitação se tornou no tema mais recorrente dos meus textos. Está a acontecer em toda a Europa e em boa parte do mundo mais desenvolvido, deixando evidente que não é possível, num mercado aberto e globalizado, permitir que as cidades sejam totalmente financeirizadas. A transformação da habitação num ativo financeiro está a ter efeitos de tal forma devastadores que os Estados terão de reaprender o que há muito tempo deixaram de fazer na Europa e nos Estados Unidos: políticas públicas e regulatórias musculadas.

Cidades geridas pelo mercado são como países geridos pelo mercado. Se o Estado se demite, até para o mercado se tornam um problema.

Em Portugal, onde a habitação pública só existe para pobres e o cooperativismo é insignificante, deixámos que este pilar fundamental do Estado Social ficasse dependente do comportamento do mercado. E aconteceu o que aconteceria na saúde ou na educação se fôssemos na cantiga dos que acham que é esse o caminho para direitos fundamentais.

Perante o erro evidente, insistem, aliás. Dizem que é um problema de oferta no terceiro país europeu com maior número de fogos por mil habitantes. Dirão: sim, mas as casas estão nos lugares errados. Os lugares certos são os que têm maior pressão e, por isso, os mais caros. O que quer dizer que o que lá construírem, se depender do mercado, vai-se dirigir ao segmento mais alto, em que a pressão da procura também é alta, mas com muito mais retorno para quem vende.

Inflação na construção civil, com a pandemia e a guerra na Ucrânia, torna os preços das novas casas muito pouco compatíveis com as carteiras nacionais. Qualquer nova oferta dirige-se a um segmento onde há procura e o lucro é maior. Já respondi a esta tese de quem arranja sempre forma de continuar a acreditar na “mão invisível” num longo artigo que escrevi em maio.

Mesmo a conversa da queda do ritmo de construção ignora que, quando o PER ainda fazia sentir os seus efeitos e houve um “boom” da construção imobiliária, o sector da construção civil representava quase 20% da nossa economia. Olhando para os outros países europeus, a construção civil representa em média 9% da riqueza, e é por esses valores que a nossa anda agora. Dizer que temos de construir ao ritmo da viragem do século, ignorando o stock entretanto criado e ignorando que esse ritmo estava a gerar uma bolha que tomava conta da economia do país, é responder a um problema criando outro. É agora que estamos alinhados com o resto da Europa. Até porque parte da construção se direcionou para a reabilitação, onde estávamos muito abaixo dos nossos parceiros europeus. É bom recordar que, na Polónia, o segundo país que está a construir mais casas novas, o preço das habitações está a crescer mais do que no nosso país.

A oferta que tem de crescer é para a classe média e média baixa, que é muito pouco apetecível para quem ainda consiga construir em Lisboa, Porto ou Algarve. E aí temos de fazer o mesmo que o resto da Europa: habitação pública. A média portuguesa é de 2%, em Lisboa e no Porto andará pelos 10%. O padrão normal, nas cidades do Norte da Europa, é que mais de 25% do total de casas sejam oferta pública ou cooperativa, a preços acessíveis. E é arrendamento que precisamos. O maior senhorio municipal da Europa é a câmara de Viena, graças aos governos social-democratas (quando isso ainda não era chamado “comunismo”) depois da I Guerra. É com estes países que temos de aprender.

O problema é que, até chegarmos a esse ponto, se é que estamos sequer a caminhar para ele, há uma emergência agravada pelo aumento das taxas de juro. E essa só se resolve com medidas imediatas de regulação de um mercado que, de qualquer das formas, teria sempre de ser regulado a partir do momento em que se globalizou.

O que por cá se considera radical é o comum em muitos países europeus que, tendo oferta pública, até têm uma situação menos trágica do que a nossa: regular aumentos entre contratos, penalizar casas devolutas em zonas de grande pressão de procura, limitar a venda a não residentes, limitar o alojamento local (temos 100 mil casas em alojamento local, e Lisboa é das cidades europeias com mais AL por cem mil habitantes) e pôr fim de todos os benefícios fiscais para atrair o mercado externo para o imobiliário.

O papel regulador do Estado é este mesmo: quando um determinado sector se transforma num problema para todos os outros, tem de se travar o crescimento do “eucaliptal”. Quem acredita que basta deixar o mercado funcionar livremente tem andado com pouca atenção ao que se passa nesta área.

A crise da habitação tem uma brutal transversalidade nos seus efeitos. Não é só a crise social, o que já bastaria. Ela bloqueia a economia, pressionando os custos do trabalho por consumir boa parte dos rendimentos. Afeta as empresas, por não conseguirem contratar nas cidades e regiões onde há mais pressão. Desestrutura os serviços públicos, impedindo que se contratem professores, médicos, polícias... Expulsa os mais jovens que formamos, atrasando a modernização da nossa economia e agravando a nossa crise demográfica (e, com ela, a sustentabilidade da segurança social). O seu impacto é tal que não se pode dar proteção absoluta a todos os direitos adquiridos. Nenhum direito económico pode ter este preço para o conjunto da sociedade e da economia.

Esta crise impõe duas transferências de recursos que aprofundam duas injustiças e dois problemas estruturais para a nossa sociedade. E isso pesa quando se pondera a legitimidade de cada medida.

Estão a ser transferidas quantidades absurdas de dinheiro do trabalho e do resto da economia para a banca, por via do aumento das taxas de juro, e para atividades rentistas, por via de rendas desproporcionadas para o investimento a que corresponderam. Esta transferência reforça um vício secular da economia nacional: o rentismo.

Hoje, a única forma segura de ascenção social não é garantir saber e formação aos filhos (essa ascensão só se fará pela emigração), é deixar uma casa para viver ou para arrendar a preços que substituam o rendimento de um salário. É deixar-lhes uma renda para não terem de depender do que produzem. Isto alimenta uma sociedade incapaz da solidariedade, do desenvolvimento e da inovação – já para não falar do mérito, porque esse é caminho movediço, como tantas vezes já escrevi. Não se trata de saber se é justo ou injusto defender esse ou aquele direito de propriedade, mas se é sustentável dar-lhe toda a prioridade. Se é sustentável transferir boa parte do dinheiro conseguido a produzir para ganhos rentistas improdutivos.

A segunda transferência é ainda mais perigosa e especialmente difícil para quem, como eu, resiste aos conflitos geracionais que apenas semeiam ressentimento. Mas a verdade é que estamos a transferir recursos dos mais jovens para as gerações que tiveram condições favoráveis para recorrer ao crédito (as necessidades de capital inicial eram muito baixas, quando comprei a minha primeira casa) e comprar casa (os preços eram ridículos em comparação com os que são praticados hoje). Estamos a pôr uns a trabalhar para os outros. Não para defender as necessidades dos mais velhos, numa solidariedade intergeracional que defendo, mas como forma de exploração desproporcionada de uma necessidade básica.

Não precisamos de um pacto de regime que não desagrade a ninguém, mas também não mude coisa alguma. Precisamos de um governo capaz de tomar de decisões e de resistir à reação que sempre aparece quando interesses legítimos entram em conflito. É o preço de fazer escolhas. É desanimador ver como, que perante a pressão mediática, o Governo foi reduzindo o pouco que tinha algum significado no Mais Habitação, até só ficar a perturbação do mercado que estes momentos políticos criam, sem o reverso de alguma melhoria.

A necessária regulação dos aumentos das rendas entre contratos ficou tanto tempo em debate que levou à corrida ao despejo e aumentos exponenciais das rendas. E, depois de ter este efeito, o Governo recuou em toda a linha e hoje, sem que os assustados senhorios tenham sequer dado por isso, é pouco mais do que nada. Depois de anos de pressão para fazer cair benefícios fiscais a residentes não habituais, Costa põe finalmente um travão quando já vão quase em cem mil.

É tudo a conta-gotas, ao sabor dos protestos e das reações. Não há um rumo para ser defendido ou contestado. Não há um programa que se tente apoiar numa maioria social, mesmo que a pressão de quem tem acesso quase exclusivo espaço mediático – e numa economia rentista são os impulsos rentistas que mais se fazem ouvir – pareça ser enorme. Há a costumeira gestão quotidiana, medidas desgarradas de emergência, respostas à pressão do momento. E até o que podia ser bom se perde em tanta pequenez.»

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2 comments:

João Martins disse...

Rendas de casa. Os meus pais casaram-se e foram viver para uma casa alugada na qual viveram o resto da vida. Ela sem emprego (era criada de servir interna) e ele a ganhar 750 escudos por mês. A renda de casa era de 650 escudos por mês.

António Alves Barros Lopes disse...

Saliento:
"Dizem que é um problema de oferta no terceiro país europeu com maior número de fogos por mil habitantes."
Também os censos de 2021 dizem que temos mais casas que famílias. A relação é, contas redondas, de 1,4 casas por cada família. Dizem que se localizam no sítio errado.
- Qual é o sítio certo???
- Onde há mais casas que gente???
- E o despovoamento... ninguém olha para ele???
Então é incentivar o seu combate!
O desordenamento territorial não começou agora. Consolidou-se ao longo dos anos com politicas que a tal conduziram.
Agora querem remediar a coisa com soluções pontuais e de emergência. Conduzirá a mais casas onde já há gente a mais.
Desintegradas de uma estratégia global e a muito longo termo, só conduzirão a mais concentração e desiquilibrio!