«1. Portugal orgulha-se de ter sido pioneiro da Terceira Vaga de Democratização, tendência que abalou regimes autoritários e totalitários no último quartel do século XX. Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe. Na viragem do milénio instalou-se uma vaga de sinal contrário, levando à des-democratização ou derrapagem democrática. Contrariamente ao período entre as duas guerras do século XX, com os fundamentos da democracia atacados teórica e praticamente por meios violentos, expressos em golpes de Estado, pronunciamentos militares, fraudes eleitorais e afins, o que caracteriza a Terceira Vaga de Autocratização é a apropriação por meios democráticos de postos-chave no aparelho de Estado e a sua captura por actores que desvirtuam o seu funcionamento (limitando a independência do poder judicial, controlando a circulação de informação, manipulando a administração eleitoral, reforçando o carácter repressivo e a arbitrariedade, etc.).
Um exemplo do modus operandi destes novos autocratas vem da Hungria, que deixou ser uma democracia no sentido que a UE lhe confere. A ela se aplica a caracterização do processo feita por Nancy Bermeo: debilitação ou eliminação, a partir de instâncias do próprio Estado, das instituições que caracterizam o Estado de Direito.
2. A vaga autoritária prospera de mãos dadas com o que se tem chamado melancolia democrática. A democracia tem vindo a perder a sua aura de regime bom e governação decente, sublinhando-se o crescente fosso entre promessas e realizações dos sistemas representativos, prontos a acolher comportamentos em clara oposição aos valores que apregoam: atitude diferenciada da Justiça perante ricos e restante população, teias de favorecimento individual em detrimento dos processos legais, etc. A ideia de um Frei Tomás ganha terreno. Este novo mundo de “percepções” – umas com fundamento exíguo, outras com clara base de sustentação – gera frustração, raiva, desespero, desconfiança, desilusão, e o sentimento de que o interesse pessoal da elite – na qual se incluem “os políticos” – se sobrepõe ao interesse colectivo. Bem se pode dizer que uma andorinha não faz a Primavera, e que casos e casinhos são indevidamente empolados: os eleitores que sentem na pele um declínio da sua qualidade de vida estão predispostos a distanciar-se de quem podem responsabilizar por essa evolução negativa, e a dar ouvidos a quem critica “o sistema”. A melancolia democrática não equivale a soluções populistas que condenam a sua essência e atinge tanto monarquias constitucionais como regimes republicanos, sejam eles parlamentaristas, presidencialistas ou semipresidencialistas. Não é o modelo institucional a questão-chave: são as políticas públicas.
Não há dúvida de que se vive melhor em Portugal do que em 1974; mas, depois da Revolução, tivemos períodos de maior prosperidade e melhor agenda redistributiva. O índice de distribuição de rendimentos revela nos últimos anos maior concentração de riqueza no estrato superior da sociedade (após ter tido um comportamento oposto nos anos da “geringonça”). Esta evidência conta na apreciação do “sistema” que uns se propõem substituir ou destruir, e outros conservar com retoques na fachada. Mas isso não é uma fatalidade.
Se na Europa com um desempenho económico anémico o populismo cresce, em Portugal as receitas europeias que reduziram o leque de opções políticas democráticas e conduziram a uma deterioração do Estado Social e à degradação dos serviços públicos dificilmente poderiam ter outra consequência. A democracia, dizia Lincoln, é o governo do povo, pelo povo – e para o povo. Não vive sem uma componente substantiva a par das suas formalidades. No quadro actual, apenas um em cada cinco países que iniciam o movimento de ruptura com o Estado de Direito consegue travar a tempo de cair do outro lado do muro.
3. As visões populistas identificam a elite que abominam com os partidos, sobretudo os que alternam na governação. Disso é testemunho o crescimento da extrema-direita em Portugal, hoje com 50 deputados no Parlamento. Mas também o forte impacto de quem geriu longos meses um silêncio ambíguo com que se quis distanciar do statu quo – ou do “sistema”? – e cujas ideias plasmou agora num artigo-manifesto.
Uma crítica ao (mau) funcionamento dos actuais partidos não é necessariamente uma atitude populista. Essa pressente-se no modo como Gouveia e Melo entende o estatuto e os poderes presidenciais, avantajando-os como é típico dos “salvadores da pátria”, invadindo esferas executivas e legislativas. Lembra a “Síndrome do Palácio Errado” que levou dois presidentes de Timor-Leste, descontentes com os seus (limitados) poderes constitucionais para determinar uma agenda de políticas públicas alargada, tal como a que nos propõe, a abdicar da recandidatura e a optar pela formação de partidos concorrentes ao cargo de primeiro-ministro.
É certo que o semipresidencialismo tem elasticidade para contemplar um leque alargado de equilíbrios de poder, acentuando o pendor presidencial ou pesando mais a conjuntura parlamentar. A função presidencial, seja qual for o hábito que o monge vista, é de natureza eminentemente política, e não, como se apregoa, de índole institucional (dizia Jorge Sampaio que o Presidente da República não é um supernotário). Mas não abarca o exercício do poder executivo nem as competências parlamentares.
4. Perante este cenário, que nos oferece o mercado político das presidenciais? Candidatos com (estreita) base vincadamente partidária – e uma excepção significativa, que toca um ponto sensível do eleitorado. Temos já candidaturas do Chega, da IL, do PSD e é possível que na direita partidária apareça ainda mais alguém; antevemos à esquerda candidaturas do PCP e quiçá do BE. O PS, a quem a divisão da direita permitia sonhar com o regresso a Belém se se dispusesse a apostar numa candidatura agregadora concebida em função da base social, e não do aparelho partidário, parece entretido em desvalorizar o eleitorado que aspira a um outro registo político – que é, aliás, o legado de Soares e Sampaio.
Isso mesmo vai dizendo o almirante Gouveia e Melo, que entende a melancolia democrática e o cansaço com o statu quo – mas parece não se furtar a tentações fora do quadro constitucional. Não compreender o seu eco junto do eleitorado pode ser dramático, e abrir portas para uma aventura com alguém cuja formação o leva a privilegiar a obediência ao comando hierárquico em detrimento da responsabilização perante os pares e em relação àqueles que deve servir – os eleitores. A tradição civilista da II República é de equilíbrio de poderes limitados e responsabilização vertical onde a palavra decisiva vem da base – não do “chefe”.
A esquerda democrática já forjou virtuosas soluções envolvendo diversas formações e a sociedade civil. O PS parece estar empenhado em seguir essa via nas autárquicas de Lisboa. Porquê, então, o afunilamento das opções para dentro do aparelho partidário, reforçando a conotação com uma atitude situacionista em acelerado descrédito e não reformista como se impõe para combater eficazmente os perigos do momento?
D. Sebastião nunca esteve tão perto de ser eleito Presidente da República Portuguesa.»
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