«O doutor Samuel Johnson terá declarado um dia que era capaz de abstinência, mas nunca de moderação. Uma análise que podia bem ser feita a propósito dos portugueses: o modo ciclotímico como coletivamente reagimos à pandemia e gerimos o confinamento aparenta alternar entre o excesso e a abstinência, tocando ao de leve na moderação.
Em curtas semanas, o espírito do tempo passou de um quotidiano em que quase parecia que a covid tinha desaparecido para um confinamento radical, que depois se transformou num consenso em torno da necessidade de uma métrica clara da qual passariam a depender todas as decisões. Este consenso logo evoluiu para um debate sobre o desconfinamento. Talvez a moderação que nos faltou no passado recente seja útil no momento atual.
Não se pense, no entanto, que esta inclinação para excessos é uma versão atual da frase atribuída a Júlio César sobre o povo que, nos confins da Ibéria, não se governava, nem se deixava governar. A questão não é de índole cultural, é antes política e institucional. E, na verdade, não precisamos de um calendário, mas, sim, de critérios claros.
A ideia de que era possível ‘governar pelos números’ ganhou tração após a penúltima reunião no Infarmed. Por momentos, parecia que estava a emergir um consenso na sociedade portuguesa sobre a necessidade de identificar uma bateria de indicadores que possibilitasse alguma despolitização das decisões quanto ao ritmo e escolhas do desconfinamento. Um consenso que, como muitos outros, se desfez em ar à primeira oportunidade.
Porventura o motivo principal para este rápido processo de rarefação reside no facto de a tal bateria de indicadores não ter surgido. A questão gera perplexidade a quem observa à distância: se se foi tornando claro que há variáveis cruciais para a gestão do confinamento, qual o motivo para que as decisões não se baseiem na variação desses indicadores? Se o que deve informar as decisões é a variação no índice de transmissibilidade (o tal Rt de que, entretanto, todos já ouvimos falar), os níveis de testagem e o rácio de positividade, bem como a pressão sobre o SNS, medida através da taxa de ocupação de camas em UCI, por que motivo não se trabalhou num quadro de bordo que cruze estas dimensões com a evolução da vacinação, a capacidade de rastreio e a propagação de novas variantes? Entre cientistas e decisores políticos, devíamos ter tido uma resposta pública a estas dúvidas.
Até porque a sociedade portuguesa vai fazendo o que pode — como revela, por exemplo, a forma como o tema da prioridade à educação foi ganhando o espaço que, desafortunadamente, não teve no primeiro confinamento. O que talvez sirva para revelar que, afinal, este povo não só se deixa governar como até ajuda a que a governação obtenha melhor desempenho.»
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