20.6.10

Vaticano, Saramago e o resto


Ao contrário de muito que tenho lido acerca do artigo sobre José Saramago, que Claudio Toscani publicou ontem no órgão oficial do Vaticano, considero-o perfeitamente normal. Diria mais: legítimo.

Se é discutível a pressa com que o mesmo apareceu, vinte e quatro horas (ou nem tanto) depois da morte do escritor, não diria o mesmo quanto ao seu conteúdo. Não sei se os termos «populista» e «extremista» são os mais correctos para qualificar Saramago, mas parte do seu discurso foi certamente anti-religioso e é verdade, sim, que tornou «banal o sagrado», o que, na minha opinião, foi um dos seus maiores méritos e um dos seus impactos mais úteis e inegavelmente eficazes. O que para o autor do texto do Osservatore Romano é uma terrível acusação – ter culpado «um Deus no qual nunca acreditou» - foi, no meu entender, uma consequência coerente e corajosa do que Saramago sempre defendeu. E, repito o que disse anteriormente, não sou especialmente fã de Saramago - nem como escritor, nem como pessoa.

Se O Evangelho segundo Jesus Cristo não foi uma das suas principais obras literárias, teve certamente um impacto único e marcou uma época. Esperava-se que o Vaticano batesse agora palmas depois de o ter condenado quando foi publicado? E que elogiasse Caim e as declarações públicas que então foram proferidas e que, não por acaso, escolhi ontem para «homenagear» o autor? Todas as distâncias mantidas, se tivesse morrido hoje o último dos algozes do Holocausto, não nos precipitaríamos a recordar os seus crimes?

Para o Vaticano, Saramago foi «um inimigo». Talvez Claudio Toscano se mantivesse calado se tivesse morrido um escritor mediano de um país secundário como é Portugal. Não se tratasse de um prémio Nobel e o relevo não teria sido certamente o mesmo, como não teria Portugal exultado orgulhosamente pelo seu herói, em horas e horas de transmissões televisivas e centenas de depoimentos chorosos ou exultantes. Para já não falar do patético folhetim do destino a dar a todas ou a uma parte das suas cinzas... Alguém se lembra de algo parecido quando morreu José Cardoso Pires?

Vários pesos e várias medidas, nos dois pratos de uma mesma balança – neste caso, o da vida e o da morte.


ADENDA - No extremo oposto, e a merecer realce, o notável comunicado da Conferência Episcopal Portuguesa, cujo link foi deixado nesta Caixa de Comentários.


P.S. - O Sr. Silva não veio ao enterro de Saramago. Who cares?

...

13 comments:

Miguel Serras Pereira disse...

Joana,
na resposta à tua pergunta que deixei na c-c- do meu post no Vias, esqueci-me de um ponto importante a que aludes.
Estou inteiramente de acordo com a tua oposição aos que fazem do facto de Saramago ser "o nosso único Nobel" motivo de orgulho ou argumento demonstrativo da importância da sua obra. Claro que o Nobel não o diminui, mas também não lhe acrescenta a estatura.
Diria qq. coisa de muito parecido sobre a pompa e circunstância das cerimónias fúnebres. Incomoda-me sempre a capitalização, mais ou menos calculada ou mais ou menos reflexa, das autoridades que põe a render os restos mortais de um autor ou artista como se estes fossem o seu legado mais importante. E acho lamentáveis as declarações de Mário Soares que defendeu, como se se queixasse de uma ofensa pessoal (mais uma, a somar-se à configurada pela recandidatura de Alegre), que Saramago deveria era ir para o Panteão Nacional. Mas, enfim…

Reabraço

miguel

Joana Lopes disse...

De acordo com tudo o que dizes, Miguel.
Mas creio que as cinzas acabarão mesmo no Panteão. Por mim, que nunca lá entrei, «igual ao litro»...

Porfirio Silva disse...

Joana, não estou muito de acordo com o "tom" deste post, embora concorde com muito. Não acho que aquela atitude do órgão oficial do comité central do Estado do Vaticano seja coisa simples.
Primeiro, por insistir em tentar que o debate seja feito na base escolhida por uma das partes, a deles próprios, claro. Mesmo à luz da ortodoxia católica é possível encontrar virtude num não crente - e o escriba não me parece muito para aí virado.
Segundo, por o escriba acusar Saramago de ser anti-metafísico, o que é de uma falsidade atroz. Saramago era tão metafísico como qualquer um que atribui sentido ao mundo para lá do que lhe dizem os sentidos de forma imediata. A religião é uma forma de metafísica, não a única. Pretender o contrário é uma forma de totalitarismo, uma tentativa de retirar ao outro (adversário) a qualidade de interlocutor digno. E isso, como quase-obituário, é repugnante.

Rogério G.V. Pereira disse...

Saramago disse que a igreja precisa da morte para se afirmar aos crentes. Nada de mais acertado. Neste caso até precisaram da sua morte... afirmando-se com disparates que alguns crentes ainda dão atenção. É pena? É! Mas é assim...

Joana Lopes disse...

Porfírio,
De acordo com o que diz sobre a acusação a Saramago de ser «não metafísico». Não tem sentido.

Não quis deter-me em cada uma das frases, mas na existência do texto e no seu significado geral. E, aí, julgo que discordo num ponto: não me choca que funcione como quase-obituário por se seguir imediatamente à morte, talvez porque estou farta dos elogios sem reservas que oiço há mais de 24 horas.

ruialme disse...

A Joana põe aqui as coisas com a correcção q a maior parte dos meios de comunicação não pôs: «o artigo sobre José Saramago, que Claudio Toscani publicou ontem no órgão oficial do Vaticano». É significativo q apareça no jornal do Vaticano, mas não é uma nota oficial.
Nota oficial de pesar foi esta da Conferência Episcopal Portuguesa, através do seu Secretariado da Cultura: http://www.snpcultura.org/pcm_igreja_expressa_pesar_pela_morte_jose_saramago.html
Ah, e 12 anos depois, continua a haver jornalistas a insistirem em traduzir como "comunista inveterado" o q na realidade devia ser "vetero-comunista", expressão também de um artigo do Osservatore q, entre outros elogios, apresentava Saramago como "um renovador da língua portuguesa" (cito de memória).

Joana Lopes disse...

Obrigada, Rui. Pus uma adenda com o link para o comunicado da Conf. Episcopal - um belo texto.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Boa noite, Joana,

Não vi TV durante o fim-de-semana mas, pelos vistos, terei acertado no meu presságio de 6ªf do "jornalismo-dos-mais-pequenos-detalhes-e-olha-que-eu-ainda-sou-mais-devoto-que-os-outros-jornalistas" semelhante ao da visita do Papa?
Se calhar houve uma boa razão para isso: ele foi procurando assumir-se, e muito boa alma foi na sua conversa, como uma espécie de Papa dos ateus.
Eu, por mim, que sempre fui ateu desde que em criança deixei de ser católico, não me revejo nada no espectáculo do ateísmo dele, nem consigo vislumbrar nele a posição de frontalidade e coragem que outros ateus vêem, como se tivesse sido assumido em Espanha durante a guerra civil.
E como não posso, como ninguém pode, penetrar no pensamento dele, não consigo pôr de parte que esse posicionamento pudesse ter razões de "marketing"...
Também nunca entrei no Panteão, nem vou entrar alguma vez, mas preferia ter lá sepultados portugueses que, além dos sucessos que os elegem para lá estar, fossem um exemplo de decência para todos nós, como o Carlos Paredes...
Mas, tal como o acesso ao Nobel, há muito espectáculo no acesso ao Panteão, e o Paredes não era suficientemente indecente para jogar nesse tabuleiro...
Resta como boa notícia que, afinal, a beatice da comunicação social e da sociedade aquando da visita do Papa não constitui nenhuma ameaça à separação entre a Igreja e o Estado, é antes outra faceta da mesma patetice que agora se voltou a revelar...

Joana Lopes disse...

Manel,

Sorte a tua por não teres visto tv no fim-de-semana...
Mas, ao contrário das razões que apontas, eu penso que se tratou mais de provincianismo de um país que só recebeu dois Nobel e idolatrou hoje um deles como herói nacional.Para grande gáudio dos jornalistas, claro, que Portugal só joga amanhã no Mundial.

Quando morreram Sophia ou Cardoso Pires, para citar dois escritores do nosso tempo, assistiu-se a algo de parecido?

Alguém pensará que a Suíça, que já recebeu 27 vezes o Nobel e tem menos população que nós, faz este chinfrim quando morre algum (olha: um dos nossos ex-colegas do Lab. de Zurich)? Haja pachorra...

Manuel Vilarinho Pires disse...

Joana,

Primeiros, a sorte também se constrói...
Segundos, a parte boa é a que eu digo no meu último parágrafo: "assim na terra, como no céu".
Terceiros, tu disseste algures no Facebook que não era pelas mesmas razões que eu que não gostavas especialmente do Saramago... tens a certeza?
Quartos, quando formos no 28 lembra-me de contar uma anedota do meu avô sobre "assim na terra como no céu" que, por ter uma componente mímica importante, não vale a pena contar aqui...

Vitor M. Trigo disse...

Perguntas: O Sr. Silva não veio ao enterro de Saramago. Who cares?

Eu acho que a resposta é: Francisco Louçã, que, no seu melhor estimo populista e precipitado, aproveitou para fazer "política".

Joana Lopes disse...

Pois, Vítor, não havia necessidade...

papitata disse...

O Sr. Silva foi rotulado por JS como "o génio da banalidade", por tudo o que diz ser banal.
O artigo do L'Osservatore Romano diz que Saramago tentou banalizar o divino.
Para mim, há poucas coisas mais banais do que o divino, tal como concebido pelo homem de agá maiúsculo, ou de músculo, quando não de molusco.
Logo, e segundo JS, o Sr. Silva é divino?
Há dias em que a lógica deturpada tem piada.