24.1.20

O sorriso de Isabel dos Santos



«A propósito do dilúvio de notícias sobre Isabel dos Santos, empresária que graças à relação de parentesco com um discreto ex-ditador de uma antiga colónia portuguesa construiu um império e se tornou mundialmente conhecida por antonomásia como “A Mulher Mais Rica de África” ou, nos circuitos angolanos, “a Princesa”, lembrei-me de uma frase de Honoré de Balzac dita por uma das suas personagens, Vautrin, no Tio Goriot: “O segredo das grandes fortunas sem causa evidente é um crime esquecido, por ter sido cometido como deve ser.” Uma versão reduzida da frase, e a mais conhecida e divulgada, diz que “por trás de uma grande fortuna esconde-se sempre um crime.”

Embora o sentido seja semelhante, há diferenças. Vautrin fala de grandes fortunas sem causa evidente — e não de qualquer fortuna. E acrescenta que o crime cai no esquecimento porque é cometido com arte e engenho. A nós, pobres mortais pobres, alegra-nos a versão popular porque não poupa nenhuma fortuna à suspeita de que na sua origem esteve um crime e somos confortados pela ideia de que todo o dinheiro a sério, não os trocos que levamos nos bolsos ou os míseros saldos das nossas contas bancárias, é sujo, tem a mácula de um pecado original.

Desconheço a sensação de ser possuidor de uma fortuna, lícita ou ilícita, mas desconfio que o homem ou a mulher de fortuna extraia mais gozo, mais prazer sensual, de uma fortuna acumulada através de jogadas e lances obscuros e de moralidade duvidosa do que de milhões conquistados pelo suor do rosto à luz do dia.

Veja-se o sorriso de Isabel dos Santos. Até há pouco tempo um traço fisionómico luminoso e hoje transformado num ricto tenso de fase de inquérito, na sua rasgada e económica horizontalidade que jamais se abastardava no descontrolo obsceno da gargalhada, o sorriso da primogénita de José Eduardo dos Santos tornou-nos cúmplices de todos os seus hipotéticos atos de gestão danosa, de todas as suas eventuais malfeitorias. Tinha inscrito em cada pequeníssima ruga de esforço a branda malícia daqueles que se sabem favorecidos pelo acaso, pela astúcia e, quando estes não chegam, por advogados peritos em alçapões legais, gestores fiéis e disponíveis para a imolação e redes clientelares de amigos de negócios. (Se repararem, em virtude do lugar secundário que ocupam na cadeia alimentar, os sorrisos destes são geralmente mais amplos, mais genuínos, mais desavergonhados).

Ao contrário do sorriso da impunidade, que é arrogante e desafiador, o de Isabel dos Santos denotava uma certa bonomia, uma jovialidade sedutora. Mesmo quando desfilava com ares de imperatriz por uma Lisboa ajoelhada pela crise, e se resguardava tanto quanto a sua posição lho permitia num silêncio esfíngico que inspirava temor, como se a qualquer momento, qual Salomé, pudesse exigir a cabeça dos inimigos em salvas de prata, o sorrisinho malandro, mais caluanda do que King’s College, onde se licenciou, nunca desaparecia. Era o sorriso do prazer físico proporcionado pelo dinheiro e pelo poder. Desconfio que Isabel dos Santos queria que fôssemos testemunhas desse prazer por saber que a quantidade de dinheiro em que navegava a tornava imune à inveja popular.

O pobre, meus amigos, não inveja quem tem 50 milhões de euros ou dois mil milhões de euros, abstrações inconcebíveis para a sua cabeça remediada, mas o vizinho que tem mais 50 euros do que ele. É essa quantia irrisória que o atormenta — e não os 300 mil euros que Isabel dos Santos pagou para remodelar um apartamento de quatro milhões. Por isso vê-se mais indignação por causa de um bilhete de autocarro do que pelos milhões que terão sido desviados por Isabel dos Santos.

Como todos os coletivos, o “martirizado povo angolano”, a vítima de que a nossa indignação necessita para condenar com alguma veemência “a princesa”, é outra abstração. Um povo inteiro não tem rosto. Eis a razão pela qual a indignação contra os corruptos nasce de um esforço racional, de civismo forçado, enquanto a indignação contra o ladrão de galinhas vem das vísceras, de um sentimento urgente, epidérmico, de injustiça.

Apartamentos de 50 milhões de euros no Mónaco são uma ficção, uma galinha roubada é real. O “povo angolano” é uma ficção, o proprietário da galinha é real. Isabel dos Santos, que diz ter começado a vender ovos nas ruas de Luanda, deve saber uma ou duas coisas sobre galinhas, ovos e abstrações, sobre os pequenos delitos que nos agravam e os crimes que toleramos mesmo que estejam na origem de fortunas faraónicas. Só quem sabe sorri daquela maneira.»

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