«Nos últimos anos, a nossa realidade foi sendo maquilhada com linguagem motivacional de segunda. Antes da pandemia já era assim. Agora é quase pornográfico. Há dias, ao ver um vídeo de um daqueles gurus que nos querem transformar a todos em líderes de qualquer coisa, com uma linguagem vinda da gestão, fiquei atónito. Pensava que a coisa se havia atenuado no actual contexto, mas não. De duas em duas frases, lá surgia o é preciso “pensar fora da caixa” ou o “sair da zona de conforto.”
Uma zona de conforto remete para um ecossistema que cada um vai construindo com os seus recursos para superar problemas materiais ou afectivos básicos. Parece uma aspiração essencial que, infelizmente, está longe de ser cumprida por uma larga percentagem dos cidadãos. Como é evidente, só pode querer sair da tal zona quem nela já está. A maioria queria aceder-lhe, mas muitos, infelizmente, estão longe de o conseguir.
É por isso estranho que tal zona raramente seja referida em termos elogiosos. É quase sempre lugar a abandonar. Espaço de conformismo. Algo que impede o desenvolvimento. Um cenário de auto-satisfação. De resistência à mudança. Neste tipo de retórica, mais não se faz do que mascarar a realidade, forma de normalizar dificuldades económicas ou emocionais, em novas tendências, onde as contingências passam a ser vistas como opções. São termos utilizados para os mais diversos sofismas, como esse de transformar pobreza, provisório ou precariedade em flexibilidade ou cenoura para mais competitividade, todos eles apontando para a ideia de que a verdadeira existência começa onde termina a zona de conforto, visto aqui como lugar de resistência ao capital. Daí os estigmas.
Se nos cingirmos às definições mais canónicas, a zona de conforto está ligada à construção de espaços de equilíbrio em que o bem-estar, material ou emocional, sejam garantidos. Muita da nossa energia vai para a tentativa de neutralizar, até onde isso é possível — porque não existe vida sem ausência total de riscos — tudo o que possa ameaçar esse equilíbrio que almejamos. Não era preciso a pandemia ter vindo acentuar essa realidade, mas resulta incompreensível que estigmatizemos quem procura algum tipo de segurança no meio de um mar de imprevisibilidade e de impotência. O não saber o que vai acontecer amanhã, do ponto de vista económico ou mental, é o quotidiano de muita gente. O sentimento de insegurança está lá, alojado, há muito tempo. Dito isto, ter iniciativa e ideias próprias é necessário. Mas é a partir de uma estrutura mínima de confiança que se atravessam tormentas como uma pandemia, ou que se pode arriscar, como é desejável, seja no amor, ou no campo profissional.
Não é verdade que tendamos à inacção quando as questões de estabilidade pessoal são satisfeitas. Os itinerários estão longe de serem lineares. São cheios de paradoxos. Ansiamos por certezas, mas sentimos necessidade de saber mais. Exploramos para além do que percebemos. Testamos as nossas capacidades. Extrapolamos a partir da nossa experiência para novos cenários e outras pessoas. Descobrimos, criamos, interagimos.
Procuramos reconhecimento, identidade social ou afecto, mas também sentirmo-nos bem connosco próprios, para nos desafiarmos, recriarmos e desenvolvermos, dessa forma (quem sabe?) iluminando o mundo. E isso só é possível com alguma segurança. A incerteza não edifica. E a certeza, sem novidade, pode enfadar. A zona de conforto devia ser o lugar de todos, não para dela sairmos em debandada, como nos dizem, mas porque é esse chão que poderá criar espaço para ousarmos ir muito mais além.»
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