«Numa viagem recente aos EUA, quando das eleições presidenciais, ainda me pude surpreender (pouco) com o facto de que gente ilustrada, com títulos académicos, cargos de responsabilidade em empresas, apoiante de Trump, não só aceitava como repetia as mais absurdas teorias conspirativas do próprio Trump, e dos seus propagandistas, como Robert F. Kennedy, muitos dos quais são hoje os indicados para o seu governo. Muitas destas teorias conspirativas tinham directa relação com as eleições e o conteúdo da campanha de Trump, como a história de que os imigrantes haitianos comiam os animais de companhia, ou que os democratas controlavam a meteorologia, mas as coisas iam muito mais longe, para as vacinas contra a poliomielite, e continuam na mais recente implicação de que o Hezbollah, através do FBI, tinha estado por trás do golpe de 6 de Janeiro. Uma das teorias mais absurdas associava o número de abortos num estado com as tempestades ou com outros flagelos naturais.
Como é possível? Não só é como se tornou um elemento essencial para se perceber o que se está a passar na crise da democracia. A segunda pergunta, é se isto é apenas americano ou se é também português? E a resposta é sim, também é português. Basta percorrer as redes sociais, como o X e o Facebook, e os comentários não moderados que pululam por todo o lado e percebe-se que os mesmos mecanismos estão em actuação por cá, sem a “criatividade” americana, mas com o mesmo papel, a mesma irracionalidade, o mesmo conteúdo anticientífico e… a mesma ignorância agressiva.
Ignorância é a palavra-chave, não a ignorância antiga, a que vinha do analfabetismo e da escassa escolaridade, e que tinha também uma variante a que hoje podíamos chamar conspirativa, e ligada com formas de religiosidade popular, mas era autoconsciente de que era ignorância e que isso era mau. Tinha também uma parte da sociedade e da política que fazia todos os esforços para a diminuir e combater. Por exemplo, os republicanos e de um modo geral a tradição iluminista combatia o que considerava o obscurantismo religioso. Um dos instrumentos era a “educação popular” ou em França a escola pública laica. Ou, numa outra dimensão, autodidatismo.
A nova ignorância tem características muito diferentes. Não se reconhece como ignorância, o que faz toda a diferença, e considera-se um saber, um saber perseguido, feito da “revelação” daquilo que os poderosos, os intelectuais, a elite, o deep state, não querem que as pessoas comuns saibam e por isso é anti-intelectual e anticientífica. É uma ignorância que assenta em “enganados” e por isso tem um forte componente agressivo, “nós” não queremos que “eles” saibam e “eles” sabem muito bem porquê, porque a elite, a “bolha” quer continuar a mandar “neles”.
O forte conteúdo social e político desta forma de ignorância agressiva é evidente, e o seu papel no populismo essencial. Ela dá a quem não tem poder nenhum a falsa ideia de que o tem, porque não precisa de ler um livro para o comentar, não precisa de um argumento racional basta-lhe um meme, ou algo que seja viral, não precisa de esforço nem atenção, basta-lhe a sensação de empoderamento que vem do insulto e da vingança, e com um telemóvel em frente está sempre distraída, não precisa do mundo, nem de ter “mundo”. E não precisa de amigos, precisa de likes.
O problema para a democracia, como aliás para todas as instituições de mediação, sejam as famílias, a escola, as velhas igrejas, os partidos, os sindicatos, a comunicação social, o debate público, a academia, é que muitos mecanismos tecnológicos com forte impacto social estimulam essa ignorância e dão-lhe não só plataformas, mas também modos de actuação e eficácia, sem paralelo no passado.
Registe-se que não penso que seja o computador, a internet, os telemóveis que “geram” esta forma de ignorância agressiva. As tecnologias actuam pelo modo como as sociedades as usam, e tudo o que se passa com a emergência desta ignorância tem raízes na sociedade, no modo da economia, naquilo que antigamente se chamava “luta de classes”, nos que ganham e nos que perdem. Porque, não se tenha dúvida nenhuma, que muitos dos efeitos do uso das tecnologias tem dono e intenção, porque uma das coisas que vem com este pacote da ignorância é uma enorme capacidade de manipulação. Como sabem os serviços de informação, as empresas de marketing e publicidade, todos os poderes que as sabem usar.
Entre todos os lubrificantes desta ignorância agressiva o primeiro é o deslumbramento tecnológico, a ideia de que basta saber meia dúzia de operações num telemóvel, fazer procuras rudimentares na rede, e ler e escrever mensagens mais ou menos guturais, para não precisar de comprar jornais, ver qualquer coisa que demore mais de uma meia dúzia de minutos, e isso significa ser “moderno”. O segundo lubrificante é um falso igualitarismo: eu não preciso saber nada sobre o tempo, para me pronunciar sobre as alterações climáticas.
A capacidade de distinguir entre a verdade e a mentira (seja lá o que for a verdade, mas ela existe como procura), desaparece numa selva que coloca a conspiração ao nível do saber e por isso faz com muita eficácia escravos públicos dos demagogos e privados dos que fazem os algoritmos ou “plantam” estrategicamente “informações” para alimentar a vossa fome de distração e de fúria, ou seja, entre Trump e Putin.»
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