«Não sei se ainda se lembram do sorriso permanentemente trocista de Montenegro. Não transmitia confiança. Disciplinado, corrigiu-o, no início da campanha. Corrigiu quase tudo. Criou uma personagem: um político espartano e com uma seriedade à prova de bala. Uma imitação de Cavaco e, em parte, de Passos. Quando as sondagens disseram que a imagem de Pedro Nuno Santos era a de fazedor e a de Luís Montenegro era de honesto, reforçou o perfil. É uma enorme vantagem política, ainda mais quando se vai a votos por causa de um suposto caso judicial.
Quando é essa a vantagem temos de olhar com atenção para o nosso telhado. Porque se qualquer coisa menos boa aparece, o dano é maior do que em políticos que apostam noutras coisas. Não são apenas os moralistas a estar mais sujeitos aos efeitos do escrutínio. São os que nos vendem que é preciso nascer muitas vezes para ser mais sérios do que eles. Ao contrário do sorriso, o passado não se corrige. Nem as dependências que ele cria.
Não vou repetir e desenvolver o que todas as peças jornalísticas já clarificaram. Todos percebemos o essencial da relação de Montenegro com a sua consultora e a razão porque diz que, para a oposição e para os jornalistas, os esclarecimentos nunca serão suficientes. Sabe que confirmarão que tivemos um primeiro-ministro em exercício a receber uma avença de uma empresa com relações com o Estado. Pelo menos isto.
A AVENÇA DE MONTENEGRO
Olhando para a diferença entre o que é faturado à Solverde e o que é pago a colaboradores externos de uma empresa cuja sede é uma casa particular e não tem pessoal próprio, parece que a única função da consultora é a intermediação entre o cliente e quem fornece o serviço. O verdadeiro serviço da consultora de Montenegro parecem ser os clientes que recrutou. E, não sendo mais do que isso, a grande diferença entre o que Montenegro recebe e o que paga aos que realmente prestam aquele serviço é uma avença em troca de serviço nenhum.
Com o que sabemos, há razões para temer que a empresa que domina o negócio dos casinos, dependente de concessão do Estado, tenha mantido o primeiro-ministro no seu payroll sob o pretexto de um serviço que é prestado por terceiros a um preço muitíssimo inferior.
Não vale a pena continuarem a falar da vida profissional passada de Montenegro. Ele podia receber avenças antes e pode recebê-las depois de ser primeiro-ministro. Mesmo sendo apenas um intermediário, elas são aceitáveis num cidadão comum. Não o são num primeiro-ministro. Dizer que pedirá escusa, quando as decisões serão tomadas por subordinados, é caricato. Tudo isto é óbvio para qualquer pessoa sensata.
O primeiro-ministro foi “imprudente”. O que fez a última pessoa que Montenegro achou imprudente? Demitiu-se, apesar do seu caso não ter uma ínfima parte da gravidade deste.
A verdade é que Montenegro sempre teve consciência da incompatibilidade que tinha entre mãos. Por isso passou uma empresa que era e continuou sempre a ser sua para a mulher, educadora de infância, e para os jovens filhos. Não se trata apenas de, legalmente, a consultara continuar a ser de Montenegro, por se ter casado em comunhão de adquiridos. Trata-se da empresa ser, não apenas de jure, mas de facto, de Montenegro.
Todos os clientes têm relação com Montenegro. Nenhum dos administradores parece ter capacidade para gerir este negócio. Até o comunicado assinado pelo filho foi enviado para os mails dos editores e jornalistas de política, endereços a que os supostos administradores não têm acesso. Foi Montenegro que confessou que a consultora era sua ao dizer que a empresa passava a ser dos filhos? Decidiu espoliar a mulher? Sabia que tinha mentido?
Montenegro tem-nos tomado por parvos. Quando continua a fingir que a mesma empresa sobre a qual vai decidindo publicamente o futuro já não lhe pertence. Quando identifica Inês Varajão Borges, mulher do candidato do PSD à câmara de Braga e a advogada que realmente faz o trabalho que é pago quase na totalidade a Montenegro, como Inês Patrícia. Tudo, nos sucessivos “esclarecimentos”, transpira má-fé.
Numa situação insustentável, Montenegro procurou uma fuga para a frente. Tentou-a no sábado, com a simulação de uma crise política. E acabou por ter uma ajuda insuspeita.
A CHANTAGEM SOBRE A OPOSIÇÃO
Na sua comunicação, que mais uma vez não teve perguntas (deixo isso para outro texto), o primeiro-ministro optou por misturar a indignação e a vitimização típicas de Sócrates com as manobras táticas e a chantagem da crise a que ele próprio nos começa a habituar. Exigindo que outros lhe digam se, perante um caso de que é o único e solitário responsável, ele próprio sente ter condições para ser primeiro-ministro. Se acha que sim, não tem de perguntar a ninguém. Se acha que não, demite-se e não se recandidata, porque as condições que agora pode sentir falta são éticas e não dependem de terceiros.
Montenegro quer uma crise política desde o dia em que tomou posse. Nunca parou de fazer chantagem nessa base. Ousado é usar os seus próprios erros para isso. Neste caso, trata o escrutínio é como bloqueio à governação. A mensagem foi esta: só há estabilidade política sem escrutínio. Para o primeiro-ministro, a oposição tem o dever de lhe reafirmar sucessiva confiança cega. Ou fazer cair o governo.
Se houvesse uma crise política não seria porque falte ao governo qualquer instrumento para governar. O Orçamento foi viabilizado, com poucas cedências. Poucas são as medidas deste governo a passar pelo Parlamento. O Presidente tem sido mais do que compreensivo. Os problemas que o governo tem tido, com especial atenção para a saúde, foram criados por ele mesmo.
Neste caso, se tivesse existido uma crise política teria sido criada, sem qualquer outro responsável, pelo próprio governo. Com um único argumento: Montenegro não aceitar ser escrutinado num caso em que qualquer primeiro-ministro do mundo teria de dar explicações. E exige que a oposição o apoie nessa sua estranha ideia de democracia.
SALVO PELO PCP
O PS sempre deixou claro, desde que o programa de governo foi viabilizado, que nunca aprovaria uma moção de confiança. Muito menos o poderia fazer com este propósito. Se o País fosse a votos, a campanha seria sobre dois temas: a irresponsabilidade de um governo que, com um orçamento viabilizado, provoca uma crise política e a vida profissional, empresarial e honestidade de Montenegro, razão para a moção de confiança.
Estou convencido que a AD não queria ir a eleições. O homem dos casinos fez “all in” porque acreditou que alguém se acobardaria. Foi o PCP que o salvou. Ao apresentar uma moção de censura, transferiu o ónus da crise política do governo para a oposição. Uma coisa é ir a votos com uma crise provocada pelo governo, com o chumbo de uma moção de confiança que só ele quis apresentar; outra é ir a votos com uma moção de censura aprovada pela oposição. Era óbvio que o PS não morderia esse isco.
E o PCP mordeu? Não sou tão benévolo. O PCP percebeu que a moção de confiança teria que ser chumbada, independentemente da vontade de cada um ir ou não a votos. Teríamos eleições em ano de autárquicas difíceis para o PCP. Não queria. De caminho, pode reforçar a ideia que o PS apoia este governo, tese que a moção de confiança mataria. Com a moção de censura, que atiraria a culpa da crise para a oposição, entala os socialistas. O resto era óbvio: com uma moção de censura chumbada, não restava qualquer margem para se apresentar uma moção de confiança. Montenegro dirá que a moção de censura do PCP funciona como moção de confiança ao governo. Os seus ministros começaram a dizê-lo logo na noite de sábado.
Feito o número, voltaremos à vaca fria. Acabada a manobra palaciana (moção de censura previamente chumbada e governo a recuar na moção de confiança), o escrutínio continua. Mais apertado para um primeiro-ministro que nunca mais se poderá vender como vendia. Agora sim, acabou o estado de graça. Não há drama político que faça o tempo andar para trás.»
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