«Está prestes a construir-se mais um consenso nacional sem debate. Ou com um debate que se resumirá, mais uma vez, em reafirmar o nosso europeísmo e atlantismo, como se a condição para a participação portuguesa nestes espaços fosse a de nos mantermos, usando um termo que esteve em voga, fora do radar. O novo consenso é gastarmos 3,5% do nosso PIB em gastos militares tradicionais, a que se acrescentam, na habitual promoção europeia da mentira, 1,5% de despesa de segurança nacional, com utilização civil e militar, para chegar aos tais 5%.
Desta vez, não estamos sozinhos na cobardia. A meta dos 5% é como a degradante mensagem de Mark Rutte ao homem que acabou de abandonar a Ucrânia, ameaça anexar um território de um membro fundador da NATO e não dá garantias de cumprir o artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte. Servem para alimentar o ego de Trump, mostrando que a Europa se transformou na corte de um rei louco.
Os EUA não gastam 5% do seu PIB em defesa. Esse limiar só é ultrapassado por cinco países. Três estão em guerra (Ucrânia, Rússia e Israel), dois são ditaduras (Argélia e Arábia Saudita). Os EUA gastam cerca de 3,5% para alimentar um poderoso complexo económico-militar, para saltar de guerra em guerra e ter bases espalhadas um pouco por todo o mundo. Tudo o que, espera-se, não estará no horizonte da Europa.
Defendo uma coordenação europeia no investimento em defesa, que permita complementaridade, contrariando redundâncias e incompatibilidades, e uma estrutura europeia de defesa fora de uma União já demasiado bloqueada, que inclua alguns países fora da UE (Noruega e Reino Unido) e exclua outros que estão dentro (Hungria e Eslováquia, por agora), aliados objetivos de Putin. A coordenação de investimento não obriga a gastar mais (a Europa tem capacidade militar de sobra), mas de forma mais racional. Decidir gastar sem se saber com quem e para quê é tratar de negócios, não é tratar de segurança. Fazer este planeamento sem debater o investimento tecnológico ou controlo soberano sobre infraestruturas sensíveis é viver no passado.
Na crise financeira, que se transformou, por inépcia de Bruxelas e Frankfurt, numa crise das dívidas soberanas, os países periféricos e mais expostos foram tratados como culpados e devidamente castigados, chegando, no caso da Grécia, a níveis de sadismo assinaláveis. Agora, que o centro sente o perigo mais próximo e a Alemanha acha que até pode lucrar com uma economia de guerra, a conta será dividida por todos, incluindo os países mais pobres e seguros, como nós. E o bom aluno voltou a chegar-se à frente, para ser rápido a mostrar serviço. Quando olhamos para Durão Barroso e António Costa percebemos o habitual excesso de zelo: o governante da província sonha ser alguém na política dos grandes.
Portugal tem um aeroporto para construir, um TGV para começar, um Serviço Nacional de Saúde para salvar, uma Escola Pública para reinventar, uma crise da habitação para debelar. Temos muito por fazer. É absurdo andar a inventar onde gastar, só em “gastos militares tradicionais”, 10 mil milhões, que é mais ou menos o que o Estado português gasta em educação e ensino superior. Como podemos achar que isto é a nossa prioridade? Como se toma esta decisão, que condiciona tantos investimentos urgentes para o nosso futuro, sem um debate sério?
Há investimentos militares necessários e alguma especialização interessante, tendo em conta a nossa posição atlântica. Mas tenhamos noção das proporções. Até por sabermos que, como o dinheiro não cai das árvores e temos um governo apostado em reduzir os impostos, isto terá mesmo de ser tirado ao Estado Social. Aqui e na Europa, abrindo a porta do poder aos amigos de Putin.
Claro que isto pode não passar de um jogo contabilístico, que eterniza uma forma de estarmos na Europa e no mundo, baseada em enganos, truques e falta de coragem. Mas, se assim é, não continuem com a conversa do retorno do investimento em defesa, baseada num imaginado keynesianismo militar. Primeiro, porque os jogos contabilísticos não animam economias. Depois, porque os gastos, se forem mesmo feitos, também não.
A indústria militar tem poucos players instalados e implica um enorme desenvolvimento tecnológico. E, para que isto resulte no longo prazo, é preciso fazer o que os Estados Unidos fazem há décadas: criar mercado. Ou seja, promover guerras para escoar produto. Talvez Portugal consiga vender munições e fardas, para, em troca, comprar aviões. O deve e haver deixará o país mais pobre e desqualificado. É um péssimo negócio, irracional nos seus termos e absurdo nas nossas prioridades. Na melhor das hipóteses, isto é uma fraude. Na pior, uma tragédia.»
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