Na manhã de 17 de Abril de 1975, Denise Affonço saiu de casa normalmente para mais um dia de trabalho na embaixada francesa em Phnom Penh. Culta, com 31 anos, era filha de pai francês, de ascendência vagamente portuguesa, e de mãe vietnamita. Era casada com Seng, chinês e comunista convicto, que ansiava pela chegada à capital dos khmers vermelhos que ocupavam já uma grande parte do Cambodja.
Convém recordar que a receptividade em relação aos que viriam a ser responsáveis por um dos maiores genocídios dos nossos tempos se ficou a dever, em grade parte, ao facto de terem surgido na sequência da reacção a um outro terrível crime contra a humanidade de que pouco se fala: o lançamento de 540.000 toneladas de bombas, ordenado por Nixon e Kissinger, entre 1969 e 1973, com o pretexto de atacar estradas e enclaves do Vietname do Norte em terras cambojanas.
Na embaixada francesa, já tinham tentado convencer Denise a sair do país com os dois filhos, mas ela foi ficando, em parte pelo entusiasmo e influência do marido. Até que, na tal manhã de Abril, os disparos fizeram com que regressasse a casa, não sem antes ter avistado os primeiros soldados «libertadores»: muito jovens, quase crianças de catorze ou quinze anos, vestidos de negro e com lenços branco e vermelho ao pescoço, sandálias feitas de restos de pneus.
Convencidos de que nem a revolução soviética nem a chinesa tinham sido suficientemente radicais, de um dia para o outro, Pol Pot e os seus seguidores aboliram dinheiro, transacções comerciais, documentos de identificação, encerraram escolas e universidades, eliminaram livros sem conteúdo revolucionário, proibiram línguas estrangeiras, expulsaram as pessoas de suas casas, etc., etc., etc.
O resto da história é conhecido: em menos de quatro anos, entre 1975 e 1979, o mundo assistiu, mais ou menos indiferente, ao maior genocídio do século XX, em termos percentuais - cerca de 25% da população cambojana foi pura e simplesmente eliminada. Quando alguns fugitivos contavam as suas histórias, as esquerdas consideravam-nos ao serviço do imperialismo e os Estados Unidos e seus aliados calavam-se porque a China, que sempre apoiou os khmers vermelhos, funcionava como contrapeso à URSS, em tempos de guerra fria.
Denise Affonço sobreviveu quatro anos, viu morrer a filha, alimentou-se de raízes, de formigas, roubou aos cães os restos de comida dos senhores da guerra. Diz que a sua maior surpresa não foi sobreviver, mas perceber que ninguém queria ouvir o que tinha para contar. Por isso o relatou em livro, publicado em Portugal em 2009, que eu tinha em casa mas que só agora li: No Inferno dos Khmer Vermelhos. Testemunho de uma sobrevivente, 2009, Pedra da Lua, 182 p.
(Foi um texto de Antonio Muñoz Molina, no Babelia do último Sábado, que me fez recordar a existência desta obra que eu tinha algures numa prateleira mais ou menos anárquica.)
Em 2009, Denise Affonço esteve em Lisboa e deu à Antena 1 esta entrevista que merece ser ouvida:
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5 comments:
Muito obrigada pela terrível partilha. Procurarei ler o livro.
Oportuno «remember». De caminho, recordo dois factos muito importantes, cada um a seu modo, tirados da Wikipédia:
«Le Kampuchéa démocratique fut renversé en 1979 par l'invasion du Viêt Nam et l'action des communistes cambodgiens pro-vietnamiens. Néanmoins, jusqu'en 1991, le représentant de cet État continuera de siéger à l'Organisation des Nations unies.»
Vinha aqui comentar qualquer coisa mas o comentário acima faz brotar em mim o Pol Pot irascível
Terá reparado, jpt, que não respondi.
Pois, a cara amiga é menos sanguinária do que eu-próprio ...
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