«A partir do caso de uma jovem cigana de 15 anos que pretende preparar-se para casar e ficar em casa a ajudar a mãe doente, em vez de continuar estudos para os quais não se sente vocacionada, o que foi aceite pelo juiz de Fronteira, o PÚBLICO de 5 de Setembro abriu, e bem, um debate sobre o abandono escolar, na dupla dimensão de abandono desejado por uma jovem, com apoio familiar, e de abandono aceite por um juiz. A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) não conseguiu demover a rapariga, dado o primado que é atribuído à vida familiar e, mais profundamente, a visão do mundo das comunidades ciganas que sabem que não contam com o apoio do Estado e que não existirá, mesmo com a escolaridade completa, qualquer inserção no mercado de trabalho. A jovem não desejava essa inserção profissional e, mesmo que desejasse, ela estar-lhe-ia vedada em 99% dos casos, mais ainda em Fronteira.
Do caso particular, que o juiz apreciou tendo em conta o contexto familiar e local, passou-se para o discurso idealista e normativo dos servidores do Estado e das instituições internacionais, escamoteando a real situação de marginalização e de xenofobia que atinge a larga maioria destes portugueses, e ainda mais no Interior. De Sul a Norte, a ciganofobia continua a constituir “a mais grave e escandalosa de todas as situações de racismo e xenofobia registadas em Portugal”, como descrevi, em 1997, num relatório sobre a juventude das minorias étnicas, encomendado pelo Governo de António Guterres [1]. Em 20 anos, pouco mudou. A pobreza, a exclusão habitacional e do mercado de trabalho por autarcas e empregadores, o analfabetismo e a baixa escolaridade, derivados do nomadismo forçado, a marginalização ciganófoba, a violência policial e a elevadíssima taxa de aprisionamento (por pequeno tráfico de droga, para fins de sobrevivência familiar) criavam e ainda criam um círculo vicioso a que escapavam sobretudo os feirantes (em vias de extinção, a sul) e os vendedores ambulantes. A vida familiar e comunitária, com os seus casamentos e festas, e a inserção de muitos nas Igrejas Ciganas, permitiam escapar à violência ciganófoba de populações [2] e ao silêncio cúmplice de políticos [3].
Escamoteado o quadro geral, de repente, o que fica em causa, para a secretária de Estado, é “o acesso à vida plena do seu futuro profissional e cidadão” (qual ‘vida plena’, qual futuro profissional?). E para a coordenadora do Observatório, o problema seria a “desigualdade de género entre estudantes ciganos” e, imagine-se, “o direito humano fundamental à formação de cidadãos conscientes e críticos/as”.
O discurso jurídico-filosófico, o universalismo constitucional e o pensamento escolástico, refugiando-se em categorias distantes das realidades sociais e políticas, têm consequências cognitivas que seriam ridículas se não lançassem a confusão mediática sobre as realidades sociais. Alvo de cinco séculos de perseguição criminosa e de marginalização, com resultados escandalosos, os portugueses ciganos precisam que o Estado promova um processo de discriminação positiva (como o que está a fazer para o interior ou promovendo quotas parlamentares), não precisam de devaneios sobre o “acesso à vida plena” e à “formação de cidadãos conscientes e críticos”.
Claro que, idealmente, como relembra Bruno Gonçalves, em casos particulares existiria o recurso excecional ao ensino doméstico, ou a ofertas alternativas (como ‘um curso de cozinha só com raparigas’), mas isso, na realidade, não existe para ciganos, em Fronteira, como, em geral, no resto do interior.
O que existe no interior e na generalidade do país é a continuação do nomadismo forçado (famílias a quem tiraram as casas, obrigadas pela GNR a percorrer um circuito de uma dezena de municípios para voltar ao ponto de partida; interdições de permanecer em distritos e vilas), a expulsão de vilas e cidades (como aconteceu em Beja, com o ‘parque nómada’), escolas com edifícios e turmas segregadas em que nenhum ensino escolar é dado a turmas ciganas, municípios que se recusam a construir habitação social que inclua portugueses ciganos, com medo do seu eleitorado, e uma recusa generalizada de contratar ciganos, por privados, por autarcas e até, com raras exceções, no funcionalismo público.»
[1] Portugal Multicultural. Lisboa, Fim de Século, 1999: 140-156
[2] Sintrenses ciganos. Sintra; Câmara Municipal de Sintra, 2007, 171-196
[3] Portugueses ciganos e ciganofobia em Portugal, Lisboa, Colibri e CRIA-FCSH, 2013, 337-389
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