28.4.25

Televisões e 25 de abril: mais vale ser o homem que morde o cão

 


«Na sexta-feira, estive, como todos os anos, na descida da Avenida da Liberdade, em Lisboa. Para além do desfile do ano passado, em que se assinalava meio século de democracia e a extrema-direita acabara de eleger 50 deputados, terá sido o maior de sempre. Enquanto descia avenida, disseram-me que havia problemas no Martim Moniz e no Rossio e que era a isso que as televisões estariam a dar cobertura. Fui ver os sites e, estando no meio da multidão que enchia toda a avenida de forma mais compacta do que o habitual, tive uma sensação de irrealidade: quase todos abriam com uma manifestação de umas poucas dezenas de pessoas.

Nas televisões, vi depois, muitas dezenas de milhares de pessoas dividiam o ecrã com umas poucas dezenas de indivíduos, como se as duas realidades representassem uma sociedade polarizada, esse vício televisivo que molda o debate político. Quando chegaram os noticiários das 20h00, os apresentadores das duas televisões privadas falaram do desfile, mas a ação de uns poucos criminosos teve primazia no alinhamento. As muitas dezenas de milhares que ali representaram o sentimento da esmagadora maioria do País eram assunto secundário.

O ódio e a violência levaram, mais uma vez, a melhor. Porque geram mais curiosidade. Ou tração, como se diz hoje. Quem já organizou manifestações onde podem vir a existir problemas sabe que basta um desordeiro para se sobrepor à palavra de milhares. Que nenhuma televisão filma a festa se houver uma fogueira. O que a extrema-direita percebeu, nas redes e na comunicação social, é que isso é transponível para toda a sociedade.

Perante este ambiente, Rita Matias até se sentiu à vontade para defender os que agrediram dois polícias liderados, entre outros, por um tipo que se terá de apresentar brevemente numa penitenciária. A deputada do Chega criticou a atuação “excessiva” da PSP. O amor à ordem, a recusa de qualquer desobediência à autoridade e a defesa da polícia tem dias, tons de pele e filiações partidárias.

Há uma velha regra absurda entre os jornalistas: notícia é quando o homem morde o cão. A confusão entre notícia e novidade é natural, mas perigosa. Se o jornalismo pretende aproximar-se da realidade precisa de estar atento ao que é novo, mas continuar a distinguir o que é relevante, primeiro, e o que é representativo, depois. Até porque a forma como a comunicação social representa a realidade molda a própria realidade. E há o risco de, com este espelho destorcido, as pessoas se convencerem que vivem num mundo onde, em geral, os homens mordem os cães e queiram, por isso, começar a pôr açaimes nos homens.

A extrema-direita cresce por muitas razões. Mas a comunicação social, e em especial as televisões, têm dado um forte contributo. Não é por falarem dela. Muito menos por falarem dela quando representa quase um quinto dos eleitores. É porque lhe dão um destaque desproporcionado – Ventura tem, quase todos os meses, mais tempo de antena televisivo do que o líder do maior partido da oposição.

As televisões são negócio. Depois de muita exposição, o grotesco normaliza-se e deixa de funcionar. A gritaria de Ventura está a ficar repetitiva. A tendência é procurar produtos novos mais impactantes, dando-lhes, também a eles, um destaque desproporcionado que os vai amplificando e banalizando. Não é jornalismo, é audiência. São coisas diferentes porque, como aprende qualquer jornalista, interesse público não é o mesmo que interesse do público.

A verdade é que as televisões preferiram umas dezenas de delinquentes nazis a muitas dezenas de milhares de democratas. Claro que, depois, organizam-se muitos painéis de debate para perceber o crescimento da extrema-direita. Mas não vale a pena perguntarem como isto acontece, quando mais do que cúmplices, são promotoras. E o efeito mais perverso nem é o da promoção. É o prémio. Na sexta-feira, foi dado um recado a quem esteve naquele desfile: a utilização pacífica e feliz dos instrumentos democráticos é pouco telegénica. A violência é que compensa. E estes movimentos já perceberam como pôr o “sistema” que tanto fingem criticar a trabalhar para eles. Há que saber morder o cão quando as câmaras estão por perto.»


1 comments:

Fenix disse...


"O ódio e a violência levaram, mais uma vez, a melhor. Porque geram mais curiosidade."

No telejornal das 20H a RTP1 não mostrou imagens do desfile no Porto... agora, já entendo porquê, não houve violência! Mas, a RTP não é uma Tv qualquer, por enquanto, tem responsabilidades de cidadania.

Mas, como podemos nós exigir responsabilidades à CS quando o Tribunal Constitucional permite que no boletim de voto constem "partidos" neonazis ?! E a coberto disso, eles afirmaram que eram um partido legítimo e apenas se estavam a manifestar como os outros...