2.6.25

O almirante, o contra-almirante e as perigosas inevitabilidades

 

«A comunicação social adora vencedores. Porque, ao contrário do que parece, adora o poder. Adora sentir que anunciou a mudança antes de acontecer. E é assim que se impõem as profecias autorrealizadas, apresentando um candidato que nunca fez uma campanha, e de quem quase nada sabemos, enquanto vitorioso inevitável. Isto, apesar das tantas surpresas que a vida política nos tem reservado e de o voto nunca ter estado tão solto.

Sim, é verdade que tudo está a favor de Henrique Gouveia e Melo. A farda em tempos de orfandade de autoridade política. O papel na pandemia, que beneficiou todos os envolvidos, uma originalidade doméstica num país de idosos. A ausência de currículo político, considerado cadastro num tempo de descrença. O vazio ideológico, que o permite escolher o seu lugar.

Os primeiros passos do almirante mostraram a sua volubilidade: quando percebeu que as pessoas não reagiam bem a cortes sociais para investimento na defesa, recuou; quando percebeu que o regresso do Serviço Militar Obrigatório não era tão popular como parecia, deu o dito por não dito. A firmeza do estilo não se traduz em consistência programática.

Os apelos a uma união nacional em torno de um homem providencial, a quem a farda emprestou uma autoridade aparentemente apolítica, não se comparam, como é evidente, ao ódio divisivo espalhado pela extrema-direita. Mas, historicamente, uma coisa é consequência da outra. São dois condimentos do mesmo caldo político. O discurso da grandeza perdida também.

Pouco interessa em que lugar político se coloca Gouveia e Melo, que diz estar entre o socialismo e a social-democracia (o mesmo que estar entre o vermelho e o encarnado). São cálculos de conveniência eleitoral, sem grande reflexão. Interessa o que ele significa, neste tempo. Em quem não tem estrutura doutrinária ou percurso político, interessa mais a personalidade enquanto líder.

SABER ESCREVER AS SUAS GLÓRIAS

Gouveia e Melo chegou ao topo de um processo de vacinação que tinha tudo para correr bem – já tínhamos a experiência de um muitíssimo eficaz Programa Nacional de Vacinação e sabíamos da pouquíssima resistência popular às vacinas –, depois de uma campanha política contra o coordenador anterior, vinda dos bastonários dos médicos e dos enfermeiros (ambos do PSD), num momento inicial e mais sensível, quando ainda escasseavam vacinas.

Tentando livrar-se do cerco, Costa escolheu o militar que já fazia parte da equipa, que seria solidariamente responsável pelo que tivesse corrido mal. Sentiu, com razão, que um militar sem ambições políticas seria menos interessante como alvo. E assim foi. Apesar do registo de queixas se ter mantido, assim como os procedimentos perante abusos, os casos desapareceram das televisões. Instituiu-se, pouco tempo depois do caso do roubo de armas em Tancos, que os militares cumprem melhor as funções dos civis.

Gouveia e Melo soube transformar uma mera operação logística numa extraordinária campanha de autopromoção, com a multiplicação de entrevistas e aparições mediáticas, talento que lhe veio do tempo em que era relações públicas e porta-voz da Marinha. Não há memória de um cargo como este ter dado tanto protagonismo. O seu competente sucessor foi, pelo contrário, militarmente discreto.

Há comportamentos pouco militares no almirante que ajudam a avaliar a única coisa que, até ver, nos tem para oferecer: o seu tipo de liderança. Sem nada, à partida, contra Gouveia e Melo (apenas uma irritação com a forma como Costa resolvia todas as dificuldades e uma resistência ao fascínio pelas fardas), dois episódios deixaram-me de pé atrás.

O primeiro foi durante a pandemia, quando Gouveia e Melo foi ao Centro de Vacinação de Monte Abraão, onde havia dificuldades. Chamou as televisões para atacar os profissionais que ali estavam, acusando-os de falta de pontualidade e deixando claro que os tinha posto na ordem, usando, sobre eles, termos como “colinho dá a mamã em casa”. Tivesse sido um político a fazer tal coisa e teria sido trucidado por sindicatos, ordens e oposição. Mas foi, para ele, um grande momento mediático, fazendo esquecer filas no resto do País.

O segundo foi já como Chefe do Estado-Maior da Armada, onde chegou pisando algumas cabeças e graças à inútil e desesperada tentativa de Costa e Marcelo impedirem a sua candidatura presidencial. Gouveia e Melo chamou as televisões para, à distância, mas à frente delas, destratar os insurretos militares do navio Mondego. Um caso em que critiquei a indisciplina, mas que, para além de parecer ter sido mal resolvido (Gouveia e Melo perdeu em tribunal, que considerou ilícitas as sanções que impôs), me fez notar o que parece ser um padrão de liderança: o de rebaixar publicamente os seus subalternos. É coisa a que sou bastante sensível. Também o são os militares que conheço.

O APELO DA FARDA SEM POLÍTICA

O problema não é Gouveia e Melo ser independente. Até acho que essa é uma condição para ser eleito, desta vez. O problema é, num momento perigoso para o nosso regime democrático constitucional, elegermos um militar operacional, habituado a mandar, mas sem qualquer experiência institucional civil, para ocupar o mais político dos cargos.

O problema não é Gouveia e Melo ser militar, apesar de essa particularidade ser marcante, numa Europa onde é pouco comum. É ser a farda que, aos olhos dos portugueses, lhe dá autoridade. Diz muito sobre o estado da nossa democracia e do nosso país. E do que muitos eleitores esperam, com ou sem razão, de um Presidente. Expectativas a que o próprio almirante parece querer corresponder, propondo-se objetivos impossíveis com os poderes constitucionais que tem. A não ser, claro, que forme um partido para casar a Presidência com o poder executivo e legislativo.

O problema não é Gouveia e Melo ser radical. Apesar de a estética da apresentação da sua candidatura ter um odor inconfundível do passado, corresponde ao mainstream da nossa política, que não nasceu virgem em 1974, mantendo intacta quase toda a iconografia da perdida grandeza imperial. O almirante será um moderado e, ao contrário de outros, nunca presumi que viesse a ser o candidato da extrema-direita. É do centrão puro, como atesta a forte presença de todos os poderes fácticos nacionais, das sociedades secretas aos empresários de comunicação social, passando pelo assessor de Sócrates, Luís Bernardo. Isso não quer dizer que não seja um autoritário. O centro nacional está pejado desse apelo, de que Cavaco foi exemplo. É mais cultural, numa democracia insegura com uma sociedade civil frágil, do que ideológico. E é pela suspeita que seja autoritário que é popular.

QUEM SERÁ O CONTRA-ALMIRANTE?

Perante tantas incógnitas, seria perigoso deixar o almirante sozinho numa corrida que a imprensa já quer transformar num plebiscito a um quase desconhecido. Porque sem opositores severos não haverá escrutínio. Será eleito às cegas.

Olhando para a galeria de apoiantes, confirma-se a avaliação política que faço de Gouveia e Melo: com algumas excepções quase anónimas, os mais notáveis estão no centro-direita e na direita conservadora, de Isaltino Morais a Ribeiro e Castro, passando por Rui Rio, que aproveita o almirante para uma vingança interna ao PSD, e pelo possível apoio de Ventura, que não se quer medir com um homem com um chamamento irresistível para os eleitores do Chega. E é à direita que o espaço está sobrelotado: com a candidata da IL, Mariana Leitão, que poderá vir a ser uma surpresa, pela frescura contrastante nesta disputa; e com Marques Mendes, que a cada dia perde mais espaço político.

Como se vê por novos programas televisivos, há quem tenha decidido matar a esquerda para cristalizar o último resultado eleitoral. Mas, mesmo assim, e não sendo certo que esse resultado represente uma divisão sociológica estabilizada (basta recordar eleições recentes), a esquerda representa cerca de 35% dos eleitores, o maior bloco político contra Gouveia e Melo.

Sendo certo que a candidatura de António José Seguro está a léguas de fazer o pleno dos socialistas que não votarão no almirante, e que parece ter mais popularidade junto de eleitores que odeiam Costa, a esquerda tem um dilema: só deveria ter um candidato e esse candidato não pode ser Seguro, que deixará boa parte do PS e o resto da esquerda órfã.

Como defendi quando escrevi sobre Elisa Ferreira e Sampaio da Nóvoa, deve ser um candidato abrangente, preferencialmente independente, livre de amarras partidárias, com poucos anticorpos e capaz de contrapor à autoridade militar outro tipo de autoridade cívica e profissional. É no terreno positivo que poderíamos encontrar em Gouveia e Melo que a disputa pode ser feita – autoridade sem autoritarismo, independência com conteúdo. Nunca o regime e os partidos contra a novidade inexperiente, como tenta Marques Mendes. Por mais justa que seja, é perdedora. Desse ponto de vista, António Vitorino seria tão ineficaz como Marques Mendes.

Quanto ao PS, terá de escolher: apoiar Seguro e transformar estas presidenciais num trágico ajuste de contas com o seu passado vitorioso; apoiar outro candidato, atirando Seguro para um espaço sobrelotado; ou ficar neutro, de novo, não arriscando mais uma derrota, mas contando cada vez menos.

Um candidato forte na disputa ao almirante não é apenas relevante para os resultados eleitorais. É, mesmo que a sua vitória seja inevitável, fundamental para impedir uma caminhada triunfal sem escrutínio, especialmente incompreensível num tempo perigoso e com um candidato de quem sabemos tão pouco.

Só a tempestade de uma campanha disputada revelará o líder. Não queremos descobrir, depois de eleito, de que massa é feito um político que antes de o ser eleito já o era. Até porque, como se viu neste ciclo, a Presidência da República pode transformar-se num importante foco de instabilidade.»


1.6.25

Quatro Estações

 


Tela Arte Nova «Quatro Estações», com uma estação do ano em cada painel. Petit Palais, Museu das Belas Artes de Paris. Fim do século XIX, início do XX.
Eugene-Samuel Grasset.

Daqui.

Todos, todos, todos, amigos para sempre

 


01.06.1967 – Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

 


Foi há 58 anos que os Beatles lançaram o álbum em Londres (e, nos Estados Unidos, no dia seguinte). Considerado um dos mais importantes exemplares da história do rock e, em 2003, colocado em primeiro lugar na lista dos 200 álbuns definitivos no Rock and Roll Hall of Fame, pela revista «Rolling Stone», foi gravado numa fase de um certo «recuo», com os Beatles cansados de digressões e no rescaldo do escândalo provocado pelas declarações de John Lennon quando afirmou que o conjunto de Liverpool era mais popular do que Jesus Cristo. Trata-se de um álbum extremamente inovador, desde a capa à técnica de gravação.

A BBC considerou que várias canções tinham letras influenciadas por drogas e proibiu que fossem transmitidas («A Day in The Life», «Lucy in the Sky with Diamonds»), mas, só nos EUA, foram vendidas mais de 11 milhões de cópias do LP.

Bem difícil se torna a escolha de algumas canções, entre as treze, mas repesco três: 






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Mudam-se os tempos

 


A solução está à esquerda

 


«Bem sei que pode parecer insensato o título deste escrito, principalmente depois da expressiva derrota eleitoral das esquerdas nas eleições do dia 18 de maio, mas o meu ponto de partida é o seguinte: a crise institucional da democracia que se vive também no nosso país e se traduziu no desfecho eleitoral tem como origem o desprestígio e a impopularidade do monopólio rotativo da governação PS-PSD. Adotando em áreas fundamentais políticas essencialmente idênticas, ela permitiu a degradação dos principais serviços públicos, agravou as desigualdades sociais e as condições de vida. Isso mesmo semeou descontentamento, insegurança, desespero e zanga em largos setores da população contra o bloco central informal no poder e a ineficácia injusta dos seus governos.  

Como sucedeu noutros países, também em Portugal a extrema-direita potenciou e cavalgou – com largos apoios financeiros e mediáticos e novos instrumentos de manipulação algorítmica – esse mal-estar de setores relevantes das classes médias e assalariadas. Apelou sem pudor ao medo e aos instintos primitivos, explorou a desinformação e a ignorância difusa, mentiu todos os dias, manipulou, sempre estimulada por uma generosa e cúmplice cobertura mediática dominante. E perante a incapacidade das esquerdas de se afirmarem como alternativa, atropelou-as e colocou-se em posição de assaltar o poder, contra tudo o que a democracia conquistou política e socialmente com o 25 de Abril. 

A vitória eleitoral do PSD é, por isso mesmo, mais aparente e efémera do que real e estabilizadora do regime. A meu ver, à direita clássica, formalmente vencedora sem maioria absoluta, abrem-se três soluções possíveis. 

Primeira: apoiar-se parlamentar e politicamente num acordo informal e de incidência pontual com o PS – como este se dispõe a fazer –, colocando a extrema-direita numa situação apendicular. Será uma “contenção” meramente aparente e transitória: o esgotado situacionismo rotativo do centro-direita foi precisamente o que fez crescer a extrema-direita. O seu continuismo será provavelmente o prefácio do assalto ao poder pela extrema-direita em próximas eleições, a curto ou a médio prazo. 

Segunda: o PSD pode jogar no equilíbrio instável. Ou seja, pescando adrede apoios no campo do PS e aceitando integrar de forma acrescida as políticas da extrema-direita (securitarismo, anti-imigração, restrições das liberdades públicas e dos direitos laborais…). O resultado seria o mesmo da primeira solução, só que mais acelerado: um continuismo mais chegado à extrema-direita apressa o seu advento. 

Terceira: a direita tradicional pode desfazer-se paulatinamente do “não é não” e mandar às urtigas a aparência de “cordão sanitário”, como reclama um largo setor do PSD e já acontece pela Europa fora, e não só. Nesse caso, temos uma aliança parlamentar da velha direita com a nova extrema-direita, a caminho de um novo tipo de regime autoritário: uma espécie de neofascismo adaptado ao regime de historicidade e às condições sociais da época atual. Com tudo o que isso implica. 

Na realidade, à luz da democracia conquistada em Abril, as soluções aparentemente previsíveis para a direita desembocam num caminho de regressão cívica e civilizacional a curto ou a médio prazo. Perante a gravidade do que se configura, a solução, do ponto de vista da liberdade e justiça social, tem de se buscar, de se construir, com um novo curso de políticas alternativas, isto é, à esquerda. Mudando o paradigma. Devemos talvez, nesta situação grave, procurar com lucidez e coragem reinventar o antifascismo. Ou seja, promover uma solução à esquerda, plural, que una tudo o que pode ser junto em torno de um duplo objetivo geral: defender a democracia e a liberdade, por um lado, salvaguardar e aprofundar a justiça social e distributiva por outro. Para tal, lutando por políticas concretas e urgentes que respondam à crise da habitação; à defesa e melhoria do SNS, da escola pública e dos salários e pensões; ao combate ao racismo e a todas as formas de exclusão e discriminação em função do género ou da orientação sexual. Um antifascismo que se coloque contra a guerra e a demência armamentista que a promove e se pronuncie sem tibiezas aviltantes contra o massacre genocida em Gaza e pelos direitos do povo palestiniano. 

Não é, certamente, um caminho fácil neste rescaldo de um duro revés eleitoral. Exige diálogo e construção de acordos entre forças políticas, movimentos sociais e cidadania. Mas certamente a dispersão e a divisão não são a resposta digna do nosso compromisso com o passado e com o futuro. Apesar de tudo, Abril vale bem um entendimento. E de cabeça erguida.»  

Fernando Rosas

https://www.publico.pt/2025/05/31/opiniao/opiniao/solucao-esquerda-2134574


Assim cresce o mundo

 


31.5.25

A canção do nosso futuro?

 




In the town where I was born
Lived a man who sailed the sea
And he told us of his life
In the land of submarines.


Compreender o discurso político, um valor em si

 


«Apercebi-me, através de publicações circuladas nas redes sociais, dos resultados eleitorais recentes na freguesia de Rabo de Peixe, concelho da Ribeira Grande, na ilha de São Miguel. O grande vencedor foi o Chega, que ali obteve mais de 38% dos votos. Mesmo sabendo-se que votaram apenas 1999 eleitores, com uma abstenção superior a 74% e havendo 3% de votos brancos e nulos. Portanto, em Rabo de Peixe, votaram no Chega 769 pessoas (601 na AD, 329 no PS).

Estive pela primeira vez em Rabo de Peixe talvez há 20 anos e recordo ainda os diversos cartazes de organizações internacionais que ali desenvolviam a sua atividade de cooperação ou financiavam projetos, num cenário que é habitual em África e nalguns espaços da América Latina e do Sudeste Asiático, mas que creio que seria único à época em Portugal, vinte anos depois da adesão à União Europeia. A pobreza era, de facto, evidente, densa, marcada.

Em Rabo de Peixe, 60% dos residentes têm uma escolaridade até ao 4.º ano. E um terço da população de Rabo de Peixe recebe Rendimento Social de Inserção. As transferências sociais têm vários efeitos, como é sabido. Um deles em Portugal é fazer descer a taxa de risco de pobreza dos 40% para os 16% (2023), ou seja, colocar-nos, nesse tema, entre o Luxemburgo e Malta, no contexto da União Europeia, e não, por exemplo, entre a Roménia e a Lituânia. Outro é permitirem a narrativa do Chega sobre redistribuição e subvenções sociais, epigrafando os “subsidiodependentes” como exemplos de abuso cívico e de fraqueza pessoal, o que torna a sua expressão eleitoral em Rabo de Peixe aparentemente contraditória.»

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O PS e a crise da esquerda

 


«O desastre eleitoral da esquerda tem como epicentro o PS, mas vai muito mais longe do que o PS. Por razões de oportunidade política e do efeito de rebanho na comunicação social, os argumentos explicativos da AD, desenvolvidos na campanha eleitoral – a culpa foi de Pedro Nuno Santos e da sua liderança “radical”, que derrubou o Governo e colocou o PS como súbdito da “geringonça” –, tornaram-se um discurso único que acabou também por infectar o PS. Na verdade, nada disto é um argumento sério, nem Pedro Nuno Santos é um “radical”, a palavra mais abastardada destas eleições, nem o PS derrubou o Governo, que se suicidou em público, nem o PS tem uma qualquer nostalgia da “geringonça”, tem é nostalgia do Costa da maioria absoluta, que tinha um discurso nas eleições em que a ganhou claramente anti-“geringonça”.

O domínio da comunicação social pela direita fez com que este tipo de “explicações” se tornasse dominante, sem muitas vezes a percepção de que estavam a reproduzir como análise aquilo que era o argumentário da AD. Não é novidade, já aconteceu antes esta submissão a um argumentário que se torna dogmático, perdendo a origem e a marca inicial, para se tornar uma explicação útil. Uma das razões do actual sucesso da direita na comunicação social vem de ter um comentário muito mais agressivo e grupal à direita, face ao “outro” lado, muito mais mole, ou ele próprio mais próximo do argumentário de direita por razões de fracção ou luta interna. Com o eficaz lobby do Observador de um lado e do outro António José Seguro, o que é que se esperava?

A ecologia comunicacional, sendo relevante pelo seu efeito potenciador, não é a razão principal da crise da esquerda, que está presente nos resultados do PS, mas também na quase desaparição do Bloco e na sobrevivência desesperada do PCP.

Na verdade, há factores comuns na crise da democracia na Europa e nos EUA e a crise nacional, mas, no caso português, há também factores endógenos a explicá-la. Do mesmo modo que a ascensão do Chega tem a ver com o crescimento da extrema-direita noutras democracias, esta ascensão tem também de ser interpretada junto com a crise da esquerda, como um processo que tem factores comuns. Esses factores têm a ver com a crise interior dos mecanismos da democracia, a erosão das mediações na sociedade, seja da família, seja da escola, seja de sindicatos e partidos, seja mesmo das igrejas institucionais. Essa erosão dissolve mecanismos institucionais de autoridade que funcionavam com a democracia, para mediar o conflito e dar uma maior qualidade à expressão de interesses e ideias num quadro menos antagonista, individualista e solitário, e ignorante agressivamente. As redes sociais, o deslumbramento tecnológico, a crise do silêncio e do tempo lento, a moldagem dos indivíduos numa aceleração da vida, com a dissolução do conflito social no ressentimento, são hoje característicos da ecologia social que se vive nas democracias ocidentais. Ou seja, o “admirável mundo novo” em que estamos a viver e cada vez mais a entrar é hostil às democracias não por fora, mas por dentro, e por isso a ascensão de políticas de força, com homens fortes, com domínio do pathos, e a liquidação do logos e do ethos, implantadas numa vida percebida como reality show, são factores de mudança particularmente destrutivos da “paz” democrática. Não é apenas social, é educativo no sentido lato e cultural. É uma Weltanschauung, pedindo desculpa por este termo alemão que tem o mérito de ser mais rigoroso.

Ou seja, é tudo mais grave do que se pensa, vai mais fundo do que se imagina, e processos como o Chega (cujo crescimento vem também do bloqueio do crescimento da AD) e a crise da esquerda são epifenómenos. Se formos para a “juventude”, que, como se sabe, em Portugal vai até aos 35 anos infantilizados, vemos em perfeita plenitude os efeitos de uma socialização feita à margem de todas as mediações, seja da escola, seja da família, resultando no antagonismo e radicalização, na ignorância agressiva.

A esquerda há muito tempo que não percebe o que se passa à sua volta, envolveu-se em guerras culturais que perdeu e maximizaram a radicalização, perdeu identidade, subordinou-se às ideias dominantes à direita no PS, castrou-se no PCP no apoio a guerras injustas, e diminuiu-se no Bloco face a sectores radicais urbanos, o que, uma vez passada a novidade e a complacência da comunicação social, o deixou na situação de o “rei vai nu”.

Os resultados eleitorais podem oscilar para um lado ou para o outro, mas o Chega está para ficar e bloquear a governação, o PS a caminhar para ser capturado como pajem da AD, o PCP a tornar-se uma antiguidade de culto, e o Bloco a ser o partido de “todes”. Por baixo de tudo, há um Deus ex machina que move os cordelinhos, que sabe bem de mais como manipular um mundo de fragilidades, de solidão, de ignorância, convencido de que é “moderno”. Há gente que ajuda ao que está acontecer, há gente que sabe o que está a acontecer, há gente que ganha com o que está a acontecer, por isso pode e deve ser combatida em nome da democracia.»


30.5.25

30 de Maio, o dia em que acabou o «Maio de 68»

 



Há 57 anos o general de Gaulle pôs fim a um mês verdadeiramente alucinante que a França viveu em 1968. Numa alocução difundida pela rádio, que ficou célebre, dissolveu a Assembleia Nacional e anunciou a realização de eleições antecipadas: contra o perigo do «comunismo totalitário», «La Réplubique n'abdiquera pas!»



Nessa mesma noite, uma gigantesca manifestação de apoio (500.000 pessoas?) invadiu os Campos Elíseos e marcou o desejo de «regresso à ordem», que os resultados das eleições, que tiveram lugar em 23 e 30 de Junho, confirmaram com uma vitória esmagadora da direita.

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Montenegro escolhe o PS e Gouveia e Melo parece imbatível

 


«Enquanto escrevo esta newsletter, não sou sobrevoada por seres humanos altamente civilizados (desculpem o ‘pastiche’ de um dos mais magníficos ensaios de George Orwell, O Leão e o Unicórnio: o socialismo e o génio inglês) mas Luís Montenegro acabou de ser indigitado primeiro-ministro, Gouveia e Melo anunciou a sua candidatura a Presidente da República e André Ventura foi "nomeado" líder da oposição.

Comecemos por Gouveia e Melo. Ao assistir ao seu discurso, lembrei-me de Cavaco Silva. Não do Cavaco Silva dos últimos dias da Presidência, não do Cavaco Silva que é a personagem mais odiada pela esquerda (mais do que Passos Coelho), mas do Cavaco Silva vencedor, que conseguiu duas maiorias absolutas e depois dois mandatos como Presidente da República.

Se as sondagens já davam vantagem a Gouveia e Melo, este discurso de arranque é suficientemente poderoso, naquilo que apela ao imaginário nacional, para arrastar os eleitores, incluindo os eleitores do Chega que elegeram agora 60 deputados e também os que votaram PS e PSD. Pode captar eleitores do Chega, mas distancia-se do partido quando afirma que "a democracia está em perigo".»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 29.05.2025