28.10.24

Já se pode dizer que o Chega é de extrema-direita?

 


«Agora que apelou a assassinatos selectivos, já se pode dizer que o Chega é de extrema-direita? O problema já não é “normalizar” o Chega, porque o Chega já foi normalizado. O problema é normalizar as ideias do Chega e temer pelas consequências de não as seguir mais ou menos de perto. Não, a direita democrática nunca diria, como fez o líder parlamentar do Chega, “que se a polícia atirasse mais a matar o país estava em ordem”, nem saudaria, como fez o assessor do Chega, a morte de um homem — “menos um bandido” — nem haveria de sugerir, como fez Ventura, que o polícia que assassinou Odair “fosse condecorado”. Depois desta semana já podemos dizer que o Chega é de extrema-direita e que apela ao discurso do ódio? (…)

Agora que apelou a assassinatos selectivos, já se pode dizer que o Chega é de extrema-direita? o medo do Chega — e que um discurso em que fale em racismo nas polícias venha a ser aproveitado pelo Chega — capturou os maiores responsáveis políticos democráticos. Na direita democrática, a única voz razoável foi a do presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais.»

Ana Sá Lopes


Encerramento da V Conferência do Bloco de Esquerda

 



Uma cidade, uma democracia e uma lei de todos e para todos

 


«Tudo estava encaminhado para correr mal. A Câmara Municipal de Lisboa, por negligência ou pior do que isso, permitira que a marcha do Chega, marcada fora de prazo, acabasse no local já reservado pela “Vida Justa”. A PSP publicou, no antigo Twitter, um cartaz que não podia ser mais desadequado para a mensagem necessária para o fim de semana que vinha. Em vez de uma imagem civilista, que sublinhasse a diversidade da corporação, dois policias com capacetes, cara tapada, fundo negro e a frase "Pátria e Ordem", que os ativistas de extrema-direita partilharam como se fosse campanha sua.

A PSP entrou, como todas as corporações entram em momentos como este, em modo de autodefesa. Há tanta gente a dizer que temos da acreditar na palavra da polícia. Numa investigação deste género, não sei se é ingenuidade, se má-fé. Em democracia, todas as instituições são escrutinadas por outras exatamente porque não confiamos totalmente em nenhuma. Porque elas feitas por humanos.

Os humanos que dirigem a PSP lançaram dois jovens com pouco mais de 20 anos para um cenário inapropriado para a experiência que têm, sem taser e com medo e uma arma na mão. Basta ver as imagens dos dois polícias, quando não fizeram manobras de salvamento à vítima, para perceber o pânico e o choque. Que o diretor adjunto tenha dito que se têm treino básico podem estar em qualquer cenário diz bem da negligência como tudo isto é tratado. Na opinião da cúpula da PSP, a experiência não conta, ao contrário do que sucede em profissões com muito menor responsabilidade.

Também terão sido os chefes destes homens a achar boa ideia divulgar que Odair empunhara uma faca contra os policias e que deixaram que a tese o carro roubado corresse por mais de dois dias. E foi a cúpula da PSP que, depois dos acontecimentos de 2015, não percebeu que tinha de fazer uma revolução na esquadra de Carnaxide e, em vez disso, manteve os condenados ao serviço.

O jovem polícia pode vir a ser acusado e condenado, mas não deixa de ser uma vítima da incúria das cúpulas da PSP. E elas não deixarão de se proteger. Não hesitando, como já se percebeu, em mentir. E até em recorrer a uma retórica e uma estética que se esperam em partidos radicais, não em forças civis de segurança.

A “Vista Justa” mudou o destino da manifestação, mostrando ser a única organização responsável neste processo (talvez por ser a única que nada tinha a ganhar com a violência) e impedindo o encontro, na mesma praça, de militantes do Chega e aquelas a que chamam "rascaria". O facto de milhares jovens das periferias que tinham direito legal e prioritário ao uso da praça em frente à casa da democracia serem obrigados a ceder a o lugar a 200 militantes de um partido racista funciona como metáfora.

Estive na manifestação de sábado. Os jovens dos bairros organizaram a segurança, impedindo o contacto dos manifestantes com uma polícia em quem não confiam. Tirando um ou outro cartaz, o ambiente não podia ter sido mais sereno, exigindo justiça, não vingança. Da cidade que os pais constroem e as mães limpam, vieram os brancos que acreditam que o direito a ela é de todos. “Nu sta djuntu, nu sta forti” (“estamos juntos, estamos fortes”), gritado em crioulo, era repetido por brancos que nem falam a língua. Não, não esteve ali uma sociedade diversa e tolerante. As duas cidades misturaram-se, mas não se conheciam. Mas o encontro era político e, por isso, genuíno. Não em torno de uma proximidade artificial que não existe no quotidiano, mas de valores constitucionais e democráticos.

Graças à organização do “Vida Justa”, e só a ela e àqueles jovens, a manifestação chegou ao fim sem qualquer problema. E isto fez mais pela paz social, pela “ordem” ou até pela “pátria” do que qualquer competição de testosterona entre políticos. Porque a pedagogia da democracia é sempre autoministrada. É feita pela própria experiência democrática. Neste caso, de um protesto pacífico que mereceu o olhar de toda a comunidade através da comunicação social.

Até sábado, os que pouco ligaram à vigília no Bairro do Zambujal, ainda antes de qualquer tumulto, passaram dias atrás de caixotes de lixo que ardessem. Até no dia do funeral, o Presidente da República dedicou mais palavras ao pedido de serenidade do que às condolências. Morram, mas sem barulho. Diferente, em toda esta crise, esteve Isaltino Morais, que foi ao velório. No dia do funeral, sem qualquer perturbação, as televisões não resistiram a enquadrar os seus diretos com os restos dos tumultos. É uma adição a que não conseguem fugir.

Para a democracia vencer é preciso que todos sintam que é coisa sua. Que têm direito à cidade. Foi apenas um sábado, claro. Mas não foi só uma manifestação. Foi um momento histórico para quem ainda luta para ter acesso à democracia. Para quem luta pelo direito ao pequeno erro, aquele que é tolerado a todos os que enchem o peito contra a “bandidagem”, sem correr risco de ser abatido.

A lei é para todos. É para Odair Moniz, que não tinha de morrer por ter fugido a uma operação stop. É para o polícia que tirou uma vida sem que isso fosse absolutamente indispensável. É para os que feriram motorista da Carris. É para o Tiago, vítima inocente do vandalismo. É para os que nas redes sociais instigaram aos tumultos e que a PSP jura procurar. E é, como exigem mais de 120 mil cidadãos, para André Ventura, Pedro Pinto e Ricardo Reis, que instigaram ou fizeram a apologia do homicídio de cidadãos pela polícia. A lei tem de ser como a cidade: para todos.»


Fernanda Montenegro

 


27.10.24

Uma janela que faz inveja

 


Janela redonda do Palácio do Príncipe de Oldemburgo, Abecásia, Geórgia, 1902.
Arquitecto: I. K. Luceransky.

Daqui.

Um pouco mais de azul (16)

 





O Bairro dos Pobres

 

«Tive o privilégio de crescer em Leça da Palmeira, a 800 metros de um complexo habitacional a que todos chamávamos Bairro dos Pobres. A palavra bairro, nos anos 1970, já suportava uma certa carga dramática, parecida com a que alguns lhe atribuem agora. Como hoje acontece, as pessoas não moravam lá por acaso. (…)

Falhámos. E não é por continuarem a existir ricos e pobres, apesar de ser necessário fazer muito mais no sentido de reforçar as políticas de integração. O maior problema é que, cinco décadas depois do 25 de Abril, Portugal libertou-se da ditadura e ainda há cabeças amarradas e a amarrar à palavra bairro uma série de estigmas. (…)

Socorro-me de uma espécie de frase feita: “Podes sair do bairro, mas o bairro nunca sai de ti”. De certa forma, até pode fazer sentido. Talvez o facto de terem crescido lá os tenha ajudado a moldar o caráter de modo positivo e infinitamente mais digno do que o de muitos criminosos de colarinho branco, por exemplo.»


Isto vi eu, ninguém me contou

 


«Hoje percebi o poder dos meios de comunicação e como manipulam a informação de forma subtil, de modo a que os espectadores tirem conclusões que acreditam ser verdades absolutas e formem opiniões sobre temas externos às suas vidas e realidades. Instigam a polarização em debates televisivos com questões óbvias ou impossíveis de responder face aos dados, e hiperbolizam as ações que decorrem nos terrenos.

Eu sou morador do Bairro do Zambujal há uma década e vivi em vários outros bairros sociais na linha de Sintra. Por motivos profissionais, hoje viajo por todo o país e faço, em média, 100 voos por ano por todo o mundo. Conheço bem a realidade dentro e fora dos Bairros Sociais, e a verdade, de quem esteve presente, é a seguinte: Odair Moniz, de 43 anos, foi morto pela polícia na madrugada do dia 21. A polícia alegou que o carro onde Odair circulava sozinho era "roubado" (alegação já desmentida pela PSP) e que ele não terá respeitado uma ordem de paragem numa Operação Stop, o que resultou numa perseguição seguida de um despiste e abalroamento de vários carros na rua principal da Cova da Moura. Após ter resistido à detenção e "tentado atacar" os dois agentes presentes com uma arma branca (facto já desmentido pelos dois agentes envolvidos), estes viram-se na necessidade de recorrer à arma de fogo, disparando duas vezes sobre Odair, o que resultou no desfecho trágico.

O sentimento de revolta surgiu na comunidade após a divulgação destas alegações, que contêm informação errada (carro roubado) e duvidosa (atacou os agentes com uma arma branca), cruciais à investigação do caso. A isto juntam-se imagens nas redes sociais que pouco esclarecem a veracidade dos factos apresentados pela polícia. Odair, conhecido por Dá, era referenciado por ser alegre, trabalhador e pacificador, e era respeitado por várias comunidades etnicamente diversas que agora procuram respostas.

Fosse por dor e mágoa, para libertar a frustração de uma sociedade oprimida, por solidariedade ou porque queriam fazer parte do acontecimento, vários jovens fizeram o que acharam necessário para mostrar o seu desagrado face ao acontecimento trágico. Não concordo com atos de vandalismo, mas também não concordo com a violência policial e o abuso de poder que sofremos nos bairros sociais. Triste é dizer que os meios de comunicação vieram até nós e tivemos lugar de fala porque caixotes foram incendiados, e não porque um amigo faleceu.

Antes da intervenção policial no nosso bairro, eu e outros membros da associação de moradores “A Partilha” fizemos questão de trazer para dentro do bairro os meios de comunicação, que não foram mal recebidos, à exceção da CMTV, que teve de se retirar do local. Os depoimentos foram muitos, e os jornalistas tiveram a oportunidade de falar com vários membros da comunidade. Foi-lhes apenas pedido que não filmassem alguns grupos de jovens, o que alguns não respeitaram, causando momentos de tensão entre as duas partes. A presença dos meios de comunicação protege, de certa forma, a grande maioria da população externa aos distúrbios prepertados pelas forças policiais que, por esta ser considerada uma Zona Urbana Sensível (ZUS), ignoram a necessidade de diferenciar entre os causadores dos desacatos e os restantes habitantes, tratando todos de forma abrupta e agressiva, o que faz com que temam mais a polícia do que o vandalismo.

Sobre as atuações policiais, obviamente necessárias face aos desacatos causados no nosso bairro, existem alguns tópicos que devem ser esclarecidos. Em momento algum houve uma manifestação, e fizemos questão de desmentir essa informação várias vezes. Um grupo de pessoas a gritar em uníssono por si só não representa uma manifestação. É igualmente inaceitável afirmar que se usaram crianças como “escudo”. As crianças nos bairros sociais brincam na rua com outras crianças, como é habitual em aldeias e comunidades pequenas, e naturalmente aproximam-se destes focos de ação. A única pessoa que precisou de cuidados médicos foi agredida pela polícia e nada tinha a ver com os tumultos. A polícia invadiu duas vezes a casa de Odair, arrombou a porta e agrediu pessoas dentro de casa. Na segunda vez, foram forçados a recuar porque estavam na presença de câmaras de televisão e foram abordados por uma advogada, que corajosamente os impediu de avançar.

Resta dizer que o efeito mimético, gerado em diversas outras áreas de Lisboa, é o resultado de um problema comum, causado pela desumanização, segregação e racismo.»


Texto originalmente publicado em Bantumen

26.10.24

Mudança da hora?

 


Relógio de bolso Arte Nova. «Plojoux Geneve», cerca de1910.
René Lallique.

Daqui e não só.

José Cardoso Pires

 


26 anos sem ele.

26.10.1969 – As primeiras eleições do marcelismo



 

Há 55 anos realizaram-se as primeiras eleições legislativas do marcelismo e muitos acreditaram que a tal «primavera» anunciada iria permitir que o processo eleitoral se passasse mais normalmente do que no passado, ou seja, com um mínimo de liberdade e de decência. Não foi o caso, como é sabido.

Apesar da velha querela de ir ou não às urnas, a oposição foi a votos – com resultados bastante modestos porque todo o processo foi marcado, uma vez mais, pela manipulação e pela arbitrariedade do governo. Concorreu-se em duas frentes – CDE e CEUD –, depois de um longo processo de alianças e dissidências. As divergências giravam, não só mas fundamentalmente, à volta do processo para escolha de nomes para candidatos. A CEUD propunha uma escolha em «perfeita paridade», feita a nível das duas Comissões, a CDE, mais «basista», defendia «uma concepção de representatividade construída a partir “de baixo”, devendo por isso os candidatos a deputados ser apenas a resultante da aplicação sistemática do princípio electivo em todos os escalões, a partir da base» (Comunicado da CDE, publicado em alguns jornais de 11 de Setembro de 1969.)

A cisão acabou por acontecer, apesar de muitas tentativas para a evitar, mais ou menos convictas conforme os intervenientes, e consubstanciadas em múltiplas e longuíssimas sessões. No que se refere a Lisboa, lembro-me de uma delas (terá sido a última?), relativamente restrita, que se realizou em casa de Salgado Zenha. José Tengarrinha e Mário Sottomayor Cardia (que, tacitamente, representavam o PCP) foram os mais empenhados em manter a unidade, desdobrando-se em sucessivas propostas de conciliação. Sem sucesso.

P.S. – Alguns podem estar interessados em conhecer, ou relembrar, o «Resumo do programa político da Comissão Democrática Eleitoral do Distrito de Lisboa».

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Queixa-crime contra André Ventura e Pedro Pinto

 


A Petição pode ser lida AQUI e assinada AQUI.