15.5.25

Invejei a liberdade de Mujica

 


«Não sou dado a heróis. Os vivos toldam o sentido crítico. O nosso e o deles. Prefiro a confiança precária. Os mortos perdem as contradições que fazem deles humanos. Lembro-me, aliás, de me ter rebelado contra a beatificação de Nelson Mandela, que o transformou numa Madre Teresa, vazio de radicalidade e política. Nem Madre Teresa merece ser Madre Teresa, como se veio a saber. Mas podemos usar os heróis por aquilo que são: modelos morais idealizados. Arquétipos de virtudes que gostaríamos de ter e não temos, caso contrário não precisaríamos deles.

Há duas personagens contemporâneas que representam, de forma caricatural, um confronto de valores, modos de vida e ideais políticos. Duas personagens de personalidades exageradas que permitem uma adesão romântica: Elon Musk e Pepe Mujica.

Musk é o homem mais rico do mundo. Provavelmente o mais rico que a humanidade conheceu. Conquistou tudo o que queria conquistar. A sua personalidade corresponde aos valores deste tempo e Musk é símbolo máximo da virtude capitalista: empreendedor, egoísta, exibicionista, impiedoso e arrogante na vitória. Tem imensos seguidores que, apesar de não terem onde cair mortos, lhe imitam o estilo. O seu dinheiro é transformado em poder para mudar o mundo em seu favor. Musk não é só Musk. É uma ideia: que a concentração de riqueza e a ambição pessoal sem limites, mesmo que se confundam com a ganância, são motores de prosperidade.

Mujica não foi apenas pobre. Aliás, se essa tivesse sido uma mera condição, teria deixado de o ser depois da Presidência, cujo salário doou em quase 90%. Mujica escolheu a pobreza como mensagem política. Não para defender uma sociedade de pobres, mas para defender o despojamento material, que é a mais radical das mensagens contra o capitalismo, por de alguma forma o sabotar. É uma pobreza ecológica, se quisermos.

Pelo menos recentemente, Mujica não passou fome, frio ou privações graves. Apenas prescindiu do que considerava desnecessário, aquilo em que, no mundo mais rico, gastamos boa parte dos recursos. O seu exemplo é usado para tentar mudar o mundo. Mujica não foi só Mujica. É uma ideia: que a partilha, a cooperação e a solidariedade, mesmo que se confundam com despojamento, são motores de desenvolvimento humano.

Para admirar Mujica não é preciso ser pobre. Nem sequer é preciso desejar ser pobre. Não é mesmo necessário achar que os políticos deviam ser pobres. A admiração, pelo contrário, é por aquilo que não nos deve ser exigido. É por aquilo que nós sabemos que não conseguiríamos e por isso mesmo não podemos exigir aos outros, incluindo aos políticos.

Nunca tentaria copiar Mujica. Longe disso. Tenho gostos suficientemente burgueses para saber que não o conseguiria. Não sou moralista porque não me acho capaz de estar à altura da moral que gostaria de ter. Mas um modelo é como uma utopia: não representa o que somos ou queremos ser, mas o que gostaríamos de ser se tivéssemos as qualidades que sabemos faltar-nos. Um horizonte que nos transmite valores a seguir, não a vida dos que lá estão. Os verdadeiros cristãos, que não têm de ser pobres ou morrer pela humanidade, percebem o que escrevo.

Mais do que admiração, tenho inveja de Mujica. Da liberdade absoluta que o seu despojamento lhe ofereceu. E não tenho qualquer razão para não lhe seguir o exemplo, qualquer condicionalismo que não me permita fazê-lo, a não ser eu não ser Mujica. Não ter as suas qualidades. E é por isso mesmo que o invejo.

Mujica e Musk não são modelos de sociedade, porque o mundo não funcionaria se fossemos todos como eles. São modelos morais de liberdade. E tenho muitíssimo mais inveja da liberdade conquistada pelo despojamento do que da lamentável solidão e do risível exibicionismo de Musk. Se tivesse de escolher entre as qualidades dos dois, não hesitaria. Porque gostava de ser pobre? Odiaria ser pobre. Porque admiro a pobreza? Ela nada tem de admirável. O despojamento sim. É preciso ser extraordinário para não precisar de mais do que o necessário. E a grande diferença entre os dois é que a liberdade de Mujica não se conquista às custas da liberdade de ninguém.

É possível que Musk venha a ser mais recordado do que Mujica. Mas esse é outro equívoco, a que esta crónica não se dedica: a história não trata, ao contrário do que muitos pensam, da justiça. Conta as vitórias dos poderosos. Porque, no fim, são eles que a escrevem.

Foi o próprio Pepe Mujica que se queixou de querer mudar o mundo e nada ter mudado. Não sei se tem razão. Sei que a redução da política à tecnocracia destruiu a sua função inspiradora, mesmo profética, sem a qual se transforma em mera gestão do que existe. Libertários, ultraconservadores e autoritários perceberam isto e trataram dos seus santos e demónios. A esquerda deixou de perceber a importância simbólica de figuras como Mujica.

*Tinha uma versão deste texto, preparada há meses, para a comparação entre Mujica e Musk, enquanto heróis contemporâneos. A morte de Mujica levou a esta publicação bastante editada. Talvez me tenha parecido uma inspiração depois de uma campanha tão vazia.»


Um pouco tarde

 


14.5.25

Copos

 


Copo de ametista em forma de concha, decorado com ouro, rubis e diamantes. Milão, segunda metade do século XVI.
Mais tarde comprado por Luís XIV, está actualmente no Museu do Louvre.

Daqui.

O adeus de Mujica - um homem bom

 

1935-2025

O adeus político de Mujica:




14.05.1958 - Humberto Delgado no Porto

 


«Povo do Porto, a resposta está dada com esta manifestação. Façam eleições livres e venceremos!» Foi com estas palavras que Humberto Delgado se dirigiu à multidão que o aclamou em frente à sede da sua candidatura, na Praça Carlos Alberto, no Porto, há 66 anos. A fotografia passou a funcionar quase como uma espécie de ícone de uma campanha extraordinária que abalou fortemente a ditadura de Salazar.




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A marcelização de quase todos os partidos

 


«Quando, nas autárquicas de 1989, o candidato do PSD a Lisboa Marcelo Rebelo de Sousa decidiu dar um mergulho no Tejo e guiar um táxi pelas ruas da capital, caiu o Carmo e a Trindade.

Marcelo era “o Marcelo”. Por essa altura, já se sabia que “o Marcelo” era diferente de todos os outros políticos e estava sempre disposto às mais variadas maluqueiras. Marcelo é totalmente genuíno, sempre foi assim. Levou a sua personalidade para o cargo de Presidente da República, tornou-se “o Presidente do povo” – apesar dos dias piores – e mostrou abundantemente o seu peito desnudo nas televisões.

Esta campanha para as legislativas, talvez uma das mais desinteressantes de sempre, está a assistir à marcelização de quase todos os protagonistas. Já conhecemos o peito nu de Montenegro numa tarde de campanha eleitoral, e a capacidade de andar de mota de Pedro Nuno Santos. Entretanto, assistindo ao programa de Guilherme Geirinhas, ficámos a saber que Montenegro não pinta o cabelo, fez dieta, gosta de dormir com cortinas cerradas e acha que se o seu filho é bonito é porque “saiu ao pai”.

Pelo que já se sabe da antevisão do programa de Geirinhas, que vai nesta terça-feira para o ar, Pedro Nuno Santos já foi barrado numa discoteca e também tem capacidades de dar saltinhos ligeiramente ridículos lado a lado com o humorista.

O “engraçadismo” tomou conta desta campanha, muito mais do que a política. Os líderes dos principais partidos estiveram mais disponíveis para dar entrevistas a todos os programas de entretenimento e a todos os programas de humor e limitaram ao máximo as entrevistas à imprensa. Como aqui escreveu David Pontes, estiveram mais disponíveis para os humoristas do que para os jornalistas.

Mas a disputa sobre qual será o “candidato mais cool”, como escreveu Daniel Oliveira no Expresso, não se restringiu aos líderes dos mais votados. Para meu espanto, abri esta manhã o Instagram e vi Francisco Louçã, que sempre foi um institucional à sua maneira, a fazer um salto livre de cinco mil metros. Fiquei logo com vertigens. É verdade que Louçã estava a responder ao Chega que, com a educação habitual, o acusou de fazer a campanha de “bengala”, como se isso fosse um problema (era, no caso, preconceito idadista).

Temo pelas eleições do próximo ano: a tendência vai agravar-se.»


Apoio de Ana Drago ao BE

 


13.5.25

Gallé, sempre

 


Vaso de vidro "Gafanhoto e Insecto". Cerca de 1890.
Émile Gallé.


Daqui.

Marisa e a Palestina

 


Fátima

 


Vieira Resurrected no Facebook.

Combatemos Ventura calando os seus alvos?

 


«Pelo país inteiro, uma comunidade tem-se manifestado contra o homem que, desde que fundou um partido, a tem usado para o voto alimentado por um ódio tão antigo como a existência do povo cigano. Um filão extraordinário, apesar dos ciganos não representarem 1% da população. Um ódio que passou da sociedade para o espaço público. Hoje, canais de televisão referem a etnia de um criminoso, se for cigano, esquecendo-se sempre de falar dela se for branco. Talvez por se acreditar que os brancos não têm etnia. São só portugueses “normais”.

Não é a primeira vez que a campanha de um partido é “perseguida” por um grupo que o contesta. Aconteceu com os lesados do BES, com os professores e, um pouco mais complicado, com os polícias. Desde que cumpram a lei – alguns não a cumpriram e devem ser legalmente penalizados – os ciganos têm direito à sua voz e à sua defesa. E nós não temos direito de dizer que continuem a ser humilhados e insultados em silêncio, com a cumplicidade de quem acha que defender estes cidadãos portugueses custa votos.

Muitos consideram, provavelmente com razão, que esta ação concertada está a dar muitos votos ao Chega. Há até quem acredite, porque acredita que os ciganos estão genericamente à venda, que isto é manobra do próprio partido. Uma novidade: os ciganos, como todos os portugueses, têm redes sociais, grupos de WhatsApp e uma facilidade tão grande de se organizarem como qualquer outra comunidade. Outra: sentem os insultos constantes, a culpabilização coletiva e o racismo como qualquer outro grupo sentiria e, como qualquer outro grupo, são impelidos a manifestarem a sua justa revolta.

As considerações táticas quanto às consequências destes protestos estarão certíssimas, mas não se pode esperar que qualquer grupo se veja a si mesmo como um embaraço coletivo, sentindo, em momentos sensíveis, dever de se calar para não beneficiar quem o ataca. É natural que quem é insultado há anos, perante a passividade de quase todos, não seja dado a grandes taticismos. Limitam-se a fazer-se ouvir, como se fazem ouvir os pensionistas que abordam Montenegro. A dificuldade em compreendê-lo resulta da sua subalternização, mesmo aos olhos dos que supostamente os defendem: deviam, pelo menos até às eleições, calarem-se para não dar armas a quem os usa.

Sim, é provável que os protestos dos ciganos dêem votos ao Chega. Assim como as greves de serviços públicos ou as polémicas em torno da comunidade LGBT, incompreensíveis para muitos cidadãos. Mas a ideia de que os ciganos devem ficar calados, os trabalhadores não devem fazer greves, as minorias sexuais não devem ser escandalosas para não fazer crescer o Chega, parecendo acertada do ponto de vista tático, apenas garante que o Chega cumprirá a sua função: instalar o medo e cercar os alvos que escolhe com um muro de silêncio.

Não preciso de repetir o estafado poema sobre os que foram sendo catados pelos nazis, perante a passividade de todos, até já não haver ninguém para defender quem se calou. Acreditem que, em nome de valores que pareciam mais altos, também não era conveniente defender os judeus (hoje poupados pela direita do ódio, por serem instrumentais para alimentar outros ódios), os ciganos ou os gays.

É-me indiferente se, ao combater processos de estigmatização, insulto e culpabilização coletiva, estou desligado do sentimento maioritário e popular. Basta conhecer a história para saber que, em momentos sombrios como os que vivemos, raramente a decência é maioritária. Se fosse, muitas teriam sido as tragédias que nunca teriam acontecido. Nada disto é novo. Só que, no fim, defender apenas os nossos para fazer frente aos que acreditam num país só para os nossos apenas nos dá a ilusão de combate enquanto lhes damos razão.

O que tem de ser dito é que, como se percebe pelo caos que cria à sua volta, Ventura é fator de instabilidade e conflito. E que nenhum país se constrói sobre a incomunicabilidade e o ódio de que ele se alimenta. O que há para dizer é o que a decência básica manda dizer, sem pedirmos que parte do país se esconda para não lhe dar pasto.»


Casas? E isto