23.12.24

Jorge de Sena e o Natal

 


Natal de 1971

Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?...
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?

Jorge de Sena
.

Carta aberta de profissionais da saúde

 


Exmo. Sr. Presidente da República Portuguesa, Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa,
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República, Dr. José Aguiar-Branco,
Exmo. Sr. Primeiro Ministro, Dr, Luís Montenegro,
Exma. Sra. Ministra da Saúde, Dra. Ana Paula Martins,
Exmo. Sr. Procurador Geral da República, Dr. Amadeu Guerra

Como profissionais de saúde, foi com profunda preocupação e perplexidade que tomámos conhecimento da alteração da Lei de Bases da Saúde mediante a aprovação do Projeto de Lei nº384/XVI/1ª sobre o acesso de estrangeiros não residentes em Portugal ao SNS. Na sua nova redação, a Base 21 da Lei nº 95/2019, de 4 de setembro, considera que o “o acesso de cidadãos em situação de permanência irregular ou de cidadãos não residentes em território nacional (…), implica a apresentação de comprovativo de cobertura de cuidados de saúde, bem como a apresentação de documentação considerada necessária pelo Serviço Nacional de Saúde para adequada identificação e contacto do cidadão, exceto no acesso a prestação de cuidados de saúde urgentes e vitais, não dispensando a apresentação posterior de comprovativo e demais documentação necessária.”

Na prática, esta disposição legal, ao privar um segmento importante da população residente em território nacional do direito à proteção da saúde, viola a garantia de acesso de todos os cidadãos e cidadãs,. consagrada no Artigo 64º da Constituição da República Portuguesa e no Artigo 35º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Serão privadas do acesso à saúde todas as pessoas que, mesmo tratando-se de trabalhadores e contribuintes regulares, aguardam há anos atribuição de título de residência devido às demoras processuais do SEF/AIMA.

No quotidiano, estes e estas utentes encontram já várias barreiras no acesso e manutenção de cuidados de saúde. Receamos, como profissionais de saúde, que a nossa prestação de cuidados à população, nomeadamente a estes e estas utentes, possa vir a sofrer uma limitação adicional, agravando desigualdades e desfavorecendo uma população que se encontra frequentemente em situação de vulnerabilidade. A exclusão, prevista neste Projeto de Lei, é particularmente prejudicial para quem necessita de cuidados de saúde e vigilância específicos, nomeadamente crianças, adolescentes e pessoas grávidas. Finalmente, alertamos para que se possa vir a colocar em risco a saúde pública de toda a comunidade, uma vez que deixa de estar assegurado o acesso gratuito e regular à vacinação, bem como a adequada abordagem de doenças transmissíveis que representem ameaça para a saúde pública.

Preocupa-nos ainda que a limitação no acesso a cuidados preventivos e atenção primária contribua para uma procura adicional pelos serviços de urgência (SU), que passarão a ser a única porta disponível de acesso ao SNS. Receamos também que esta medida contribua para o desenvolvimento, progressão e agravamento de situações patológicas graves e complexas, por ausência de abordagem e diagnóstico atempados. De acordo com a evidência gerada e publicada a partir do estudo de várias realidades europeias, este tipo de limitações representa um agravamento na despesa final em custos médicos e não-médicos. Por oposição, esta alteração legislativa não se baseia em números, ou evidência de que a sua aplicação possa de algum modo contribuir para resolver problemas estruturais ou de financiamento do SNS.

De acordo com o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, menos de 1% dos episódios de urgência de 2023 foram atribuídos a estrangeiros não residentes, sem subsistema de saúde. E, nesta categoria, incluem-se os 26 milhões de turistas que visitaram Portugal nesse ano. Ou seja, o impacto dos migrantes com situação por regularizar é desprezível e não coloca em causa os serviços do SNS.

Finalmente, este Projeto de Lei colide com várias disposições previstas nos códigos deontológicos que regem as nossas profissões. No que diz respeito ao Código Deontológico Médico, o artigo 8º, relativo às Condições de Exercício, prevê que o médico não deverá aceitar “situações de interferência externa que lhe cerceiem a liberdade de fazer juízos clínicos e éticos” e o ponto 5 do Artigo 4º, relativo aos Deveres, prevê que o médico “deve prestar a sua atividade profissional sem qualquer forma de discriminação”. Neste âmbito, a serem regulamentadas e aplicadas as disposições do presente Projeto de Lei, a proteção da saúde da população visada, no âmbito da Ética e a Deontologia que regem as nossas profissões, poderá justificar ações de desobediência civil.

À semelhança da posição tomada por milhares de colegas nossos que, em França, assinaram um compromisso de honra em como iriam tratar sempre os cidadãos e as cidadãs visados/as por uma iniciativa legislativa similar, entretanto abandonada, dizemos: “Utentes daqui e de outros lados, a nossa porta está aberta para todos. E assim continuará.”


Natal?

 


Acontecimento internacional de 2024: Gaza, o genocídio e a morte moral do ocidente

 


«Segundo a Amnistia Internacional, e deixo os humanistas seletivos a debater com ela, o que se passa em Gaza cumpre três dos cinco requisitos de um genocídio: matar membros do grupo, causar danos físicos ou mentais graves a membros desse grupo, e submetê-lo intencionalmente a condições de vida destinadas a causar a sua destruição física, no todo ou em parte. Com base em declarações públicas e vídeos de militares e responsáveis políticos, a AI estabeleceu a intenção, ilustrada por apelos e justificações.

Quando um jornalista perguntou à secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, porque é que a AI era a primeira grande organização a chegar à acusação do genocídio, acompanhada por relatores da ONU, ela respondeu que esperava a pergunta contrária: “porque demorámos?”

Já morreram, em Gaza, mais de 44 mil pessoas. Nunca tantas crianças em tão pouco tempo – cerca de 20 mil, o que corresponde a 44% das vítimas mortais. Nunca tantas crianças ficaram amputadas e órfãs. E 90% população sente fome ou risco de insegurança alimentar extrema.

Um estudo de junho, conduzido, em Gaza, pelo Centro de Formação Comunitária para a Gestão de Crises (CTCCM) com o apoio da War Child Alliance e Dutch Relief Alliance, junto de 504 crianças feridas, incapacitadas e/ou separadas dos seus cuidadores, concluiu que 96% das crianças sentem que a morte é iminente e quase metade quer morrer em consequência do trauma. 92% das crianças “não aceitavam a realidade”, 79% sofriam de pesadelos e 73% apresentavam sintomas de agressividade. O inquérito revela que 88% das famílias foram deslocadas várias vezes, 21% forçadas a mudar-se seis ou mais vezes.

Há muito que deixámos de falar de vítimas de uma guerra. São vítimas da limpeza de um território e de uma ação de punição coletiva que caracteriza todos os agressores motivados por fortes sentimentos racismo. Neste caso, lideradas por um primeiro-ministro suprematista e criminoso. A forma como olho para os que o apoiam ou se mostram complacentes com ele não é diferente da forma como olho para um apoiante de Putin. Apenas me espanta que a nossa comunicação social trate uns com muito maior bonomia do que os outros. É por serem mais? É por estarem no poder? É por alguns até dirigirem órgãos de comunicação social?

Não é apenas Israel que morre moralmente em Gaza. Isso acontece desde que Yitzhak Rabin foi assassinado por um fanático e que o poder político foi definitivamente tomado pela corrente política que Hannah Arendt, Albert Einstein e mais 25 judeus disseram, em 1948, ser próxima “na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social, dos partidos nazis e fascistas”. O que se passa em Gaza é a morte moral do Ocidente, cúmplice, por atos e omissão, do líder que arma para que continue a chacina. Cada criança morta em Gaza é-o com armas europeias e norte-americanas. No caso dos EUA, pagas pelos seus impostos. A colaboração com Israel é superior à de quase todos os líderes e Estados que acusamos, com justiça, de apoio a Putin.

A outra vítima desta guerra é a memória, na forma como o antissemitismo, e o Holocausto e pogroms a ele associados, é instrumentalizado para defender o genocídio de um povo. Não é por acaso que entre os mais empenhados apoiantes de Israel estão muitos dos descendentes políticos do antissemitismo. A extrema-direita não abandonou a cultura do ódio pela diferença e da violência para a esmagar. Mudaram apenas as vítimas.

Quem, neste momento, apoia o que Israel (e é Israel, como Estado) está a fazer em Gaza não honra a memória das vítimas do antissemitismo. Segue as pisadas dos agressores. O que define o crime não é a identidade da vítima, são os atos e as motivações do agressor e as suas consequências.»


Baltazar e as percepções

 


22.12.24

Luzes

 


Candeeiro de mesa Arte Nova, de vidro revestido de fusões de pó transparente, branco leitoso, vermelho e laranja. Cerca de 1910.
Daum Frères, Nancy.

. Daqui.

Um pouco mais de azul (20)

 




Se Cristo tivesse nascido em 2024

 


Ladainha dos póstumos Natais




Ladainha dos póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira, in «Cancioneiro de Natal»
 

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Em 2025, segurem-se!

 


«Tenhamos esperança de que as próximas eleições na Alemanha, a realizar no dia 23 de Fevereiro, possam ser o início da resolução das crises políticas que, actualmente, assolam os dois principais eixos de desenvolvimento da União Europeia. A França e a Alemanha atravessam crises políticas a que se juntam disrupções financeiras preocupantes. A França com a sua dívida a atingir os 112% do PIB, e o pagamento de juros superior a 3% ultrapassando, pela primeira vez, a Grécia. E a Alemanha com a indefinição na sua indústria automóvel e o crescimento da economia nulo, colocando na União Europeia uma enorme pressão e preocupantes nuvens negras sobre o que vai acontecer à Europa em 2025. Os dois eixos motrizes do projecto europeu registam problemas a nível político e financeiro.

A tomada de posse de Donald Trump no dia 20 de Janeiro abre um capítulo desconhecido na história mundial. Se Trump cumprir o que prometeu na campanha eleitoral, os circuitos do comércio mundial poderão ficar abalados pela subida das taxas de juros e os habituais mercados de exportação dos países europeus sofrerão alterações resultantes do proteccionismo em que Donald Trump quer lançar os Estados Unidos.

Em termos de geopolítica mundial a guerra na Ucrânia, no Médio Oriente, e as recentes mudanças políticas verificadas na Síria podem significar o prenúncio de uma fractura na tão desejada paz mundial. A aliança política que, actualmente, se faz sentir entre a China e a Rússia é um facto nunca antes registado, que teve já como consequência a colocação de botas militares norte- coreanas em solo europeu. Paira sobre a Europa uma ameaça de guerra a que não são indiferentes (estão mesmo a preparar-se) países como a Polónia, a Suécia, a Finlândia, e os Bálticos, para os quais a proximidade geográfica da fronteira russa é preocupante.

O isolacionismo alarve que Trump quer imprimir aos Estados Unidos coloca a necessidade da Europa ter de se precaver para a possibilidade de um conflito bélico no seu espaço territorial e para o qual terá de contar, apenas, com as suas próprias forças.

Assim sendo, os países da União Europeia vão ter de aumentar a percentagem dos seus PIB’s nas despesas de armamento. A Europa terá de desenvolver a sua indústria de defesa, como meio de dissuasão para a eventualidade de continuarem os ímpetos expansionistas de Moscovo.

Em 2025 será o momento em que a Europa terá de começar a olhar para ela própria e decidir o que é essencial para as pessoas que habitam no seu espaço. Tem desafios graves para enfrentar.

A questão demográfica, a inovação e modernização da sua economia, o problema migratório. É inconcebível que ao longo dos anos a União Europeia não tenha conseguido regular os fluxos migratórios de acordo com as necessidades da economia dos países que a compõem. Sim, os fluxos migratórios têm de ser racionalizados para bem dos imigrantes que entram, dando-lhes boas condições sociais, mas também como uma necessidade para que nos países europeus não se registem problemas de segurança ao nível do que já se verifica em França.

Este é mais um dos momentos históricos em que o contexto da União Europeia vive ameaças existenciais. Para as superar a Europa terá de se centrar no esssencial. Focar-se, portanto, no crescimento económico, proteger o que de bom criou até agora, como o Estado Social, as liberdades de reunião e associação, a assistência aos mais desvalidos, a protecção na saúde e na velhice. Resolver os seus problemas de dependência energética.

Desenvolver a indústria do armamento não para fazer a guerra, mas para prevenir a paz. Emancipar-se do protectorado que os Estados Unidos têm sido até ao momento. É necessário um novo paradigma europeu, que recuse a burocracia, os atavismos e as obsoletas agendas políticas, as excessivas preocupações de regulação por tudo e por nada. É preciso que a União Europeia crie uma nova energia, no sentido prático do desenvolvimento e do bem estar das populações dos países que a compõem.

Em 2025 os tempos vão ser diferentes. Não necessariamente para pior. Mas, seguramentente, muito desafiantes. Por isso, caros leitores, segurem-se!»


21.12.24

Pedagogia realista

 


Martim Moniz, a fotografia do ano.

 

Esta foto amadora será a foto portuguesa do ano. Porque marca um caminho, uma escolha, um estado de espírito. Não é quando o ódio chega ao poder que nos devemos assustar. É quando deixa de parecer ódio e o poder se chega a ele. A resistência começa agora. Eles já ganharam. Não há qualquer cordão sanitário. E quanto mais tempo demorarmos a percebê-lo mais cúmplices seremos. Acabou a tolerância com os que acreditam que ceder é o caminho. Chega!

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