«Não sou dado a heróis. Os vivos toldam o sentido crítico. O nosso e o deles. Prefiro a confiança precária. Os mortos perdem as contradições que fazem deles humanos. Lembro-me, aliás, de me ter rebelado contra a beatificação de Nelson Mandela, que o transformou numa Madre Teresa, vazio de radicalidade e política. Nem Madre Teresa merece ser Madre Teresa, como se veio a saber. Mas podemos usar os heróis por aquilo que são: modelos morais idealizados. Arquétipos de virtudes que gostaríamos de ter e não temos, caso contrário não precisaríamos deles.
Há duas personagens contemporâneas que representam, de forma caricatural, um confronto de valores, modos de vida e ideais políticos. Duas personagens de personalidades exageradas que permitem uma adesão romântica: Elon Musk e Pepe Mujica.
Musk é o homem mais rico do mundo. Provavelmente o mais rico que a humanidade conheceu. Conquistou tudo o que queria conquistar. A sua personalidade corresponde aos valores deste tempo e Musk é símbolo máximo da virtude capitalista: empreendedor, egoísta, exibicionista, impiedoso e arrogante na vitória. Tem imensos seguidores que, apesar de não terem onde cair mortos, lhe imitam o estilo. O seu dinheiro é transformado em poder para mudar o mundo em seu favor. Musk não é só Musk. É uma ideia: que a concentração de riqueza e a ambição pessoal sem limites, mesmo que se confundam com a ganância, são motores de prosperidade.
Mujica não foi apenas pobre. Aliás, se essa tivesse sido uma mera condição, teria deixado de o ser depois da Presidência, cujo salário doou em quase 90%. Mujica escolheu a pobreza como mensagem política. Não para defender uma sociedade de pobres, mas para defender o despojamento material, que é a mais radical das mensagens contra o capitalismo, por de alguma forma o sabotar. É uma pobreza ecológica, se quisermos.
Pelo menos recentemente, Mujica não passou fome, frio ou privações graves. Apenas prescindiu do que considerava desnecessário, aquilo em que, no mundo mais rico, gastamos boa parte dos recursos. O seu exemplo é usado para tentar mudar o mundo. Mujica não foi só Mujica. É uma ideia: que a partilha, a cooperação e a solidariedade, mesmo que se confundam com despojamento, são motores de desenvolvimento humano.
Para admirar Mujica não é preciso ser pobre. Nem sequer é preciso desejar ser pobre. Não é mesmo necessário achar que os políticos deviam ser pobres. A admiração, pelo contrário, é por aquilo que não nos deve ser exigido. É por aquilo que nós sabemos que não conseguiríamos e por isso mesmo não podemos exigir aos outros, incluindo aos políticos.
Nunca tentaria copiar Mujica. Longe disso. Tenho gostos suficientemente burgueses para saber que não o conseguiria. Não sou moralista porque não me acho capaz de estar à altura da moral que gostaria de ter. Mas um modelo é como uma utopia: não representa o que somos ou queremos ser, mas o que gostaríamos de ser se tivéssemos as qualidades que sabemos faltar-nos. Um horizonte que nos transmite valores a seguir, não a vida dos que lá estão. Os verdadeiros cristãos, que não têm de ser pobres ou morrer pela humanidade, percebem o que escrevo.
Mais do que admiração, tenho inveja de Mujica. Da liberdade absoluta que o seu despojamento lhe ofereceu. E não tenho qualquer razão para não lhe seguir o exemplo, qualquer condicionalismo que não me permita fazê-lo, a não ser eu não ser Mujica. Não ter as suas qualidades. E é por isso mesmo que o invejo.
Mujica e Musk não são modelos de sociedade, porque o mundo não funcionaria se fossemos todos como eles. São modelos morais de liberdade. E tenho muitíssimo mais inveja da liberdade conquistada pelo despojamento do que da lamentável solidão e do risível exibicionismo de Musk. Se tivesse de escolher entre as qualidades dos dois, não hesitaria. Porque gostava de ser pobre? Odiaria ser pobre. Porque admiro a pobreza? Ela nada tem de admirável. O despojamento sim. É preciso ser extraordinário para não precisar de mais do que o necessário. E a grande diferença entre os dois é que a liberdade de Mujica não se conquista às custas da liberdade de ninguém.
É possível que Musk venha a ser mais recordado do que Mujica. Mas esse é outro equívoco, a que esta crónica não se dedica: a história não trata, ao contrário do que muitos pensam, da justiça. Conta as vitórias dos poderosos. Porque, no fim, são eles que a escrevem.
Foi o próprio Pepe Mujica que se queixou de querer mudar o mundo e nada ter mudado. Não sei se tem razão. Sei que a redução da política à tecnocracia destruiu a sua função inspiradora, mesmo profética, sem a qual se transforma em mera gestão do que existe. Libertários, ultraconservadores e autoritários perceberam isto e trataram dos seus santos e demónios. A esquerda deixou de perceber a importância simbólica de figuras como Mujica.
*Tinha uma versão deste texto, preparada há meses, para a comparação entre Mujica e Musk, enquanto heróis contemporâneos. A morte de Mujica levou a esta publicação bastante editada. Talvez me tenha parecido uma inspiração depois de uma campanha tão vazia.»