15.10.24

Vasos azuis não escapam

 


Emile Gallé, Vaso Ancolies, Vidro soprado à mão, gravado com ácido, marchetaria e inclusão de folhas. 1897-1900.
Émile Gallé.

Daqui.

O BES, dez anos depois

 



E como já se fala de presidenciais

 


Vejo isto e rio, rio, rio… Para não chorar agora, claro. 

Casas vazias

 


«A crise na habitação está à vista de todos. Portugal está imerso numa nova bolha imobiliária que pesa sobre a economia e está a empobrecer largas camadas da população. Há já algum tempo que nos encontramos numa emergência habitacional que afeta principalmente os rendimentos mais baixos e as gerações mais jovens, mas também os rendimentos médios. Ao contrário da crise de 2008, que afetou principalmente os bancos, a atual é mais corrosiva socialmente, porque os preços não param de subir e, numa situação destas, é mais difícil definir políticas que combatam o mercado.

Após o rebentamento da bolha imobiliária de há mais de 15 anos, a construção em Portugal caiu a pique, precisamente quando a população está a crescer devido à chegada de imigrantes.

Segundo Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas, é preciso construir 45 mil casas por ano, mais 13 mil do que as construídas em 2023, para responder às graves carências habitacionais do país. Ainda para mais, o défice de casas coincidiu com uma nova situação na economia global em que o setor imobiliário se tornou um refúgio para os investidores face à incerteza ou à baixa rentabilidade de outros ativos financeiros. São os estrangeiros e os mais ricos que fazem com que os preços subam diariamente. Com um retorno do investimento em habitação de 9,7%, não é de estranhar que Portugal se tenha tornado um dos países que mais investidores atraem. Mas não é só um problema do nosso país. Em toda a OCDE, a compra de habitação como investimento cresce mais do que a aquisição de uma habitação primária. No fundo, a habitação é cada vez mais um bem financeiro, o que colide frontalmente com o seu estatuto de necessidade básica. E é isso que é preciso mudar, muito antes de qualquer política de habitação de qualquer Governo. Por muito que se construam casas de renda acessível. Fosse o mercado financeiro mais apetecível e logo deixariam de existir investidores que compram em planta para terem os apartamentos vazios.»


14.10.24

Hotéis e estrelas

 


AD, PS e Chega

 

«Quanto às negociações Governo-Chega: independentemente da quantidade de mentiras que André Ventura possa ter dito nas entrevistas que deu esta semana, é óbvio que o Governo negociou com o Chega, mesmo que não tenha prometido nenhum lugar no Governo.

As duas reuniões do Governo com o Chega em São Bento estão confirmadas. Hugo Soares, o líder parlamentar do PSD, deu várias entrevistas onde afirmou que evidentemente o PS era “o parceiro preferencial”, mas a negociação era com “todos, todos, todos”. (…)

Nunca o “não é não” expresso por Montenegro excluiu a negociação do Orçamento do Estado entre Governo e Chega. O primeiro-ministro só diz agora o contrário porque lhe dá jeito encostar o PS à parede.»


14.10.1964 – Há 60 anos, Nobel da Paz para Luther King

 




Excertos do discurso:

«Aceito o Prémio Nobel da Paz num momento em que 22 milhões de negros nos Estados Unidos estão envolvidos numa batalha criativa para encerrar a longa noite da injustiça racial. Aceito este prémio em nome de um movimento de direitos civis que está avançando com determinação e um majestoso desprezo pelos riscos e perigos de estabelecer um reino de liberdade e um sistema de justiça. Estou ciente de que uma pobreza debilitante e asfixiante aflige o meu povo e o acorrenta ao degrau mais baixo da escala económica. Portanto, devo perguntar porque é que este prémio está a ser concedido a um movimento que é comprometido com uma luta incessante; a um movimento que não conquistou a própria paz e fraternidade que é a essência do Prémio Nobel. Depois de pensar a esse respeito, concluí que este prémio que recebo em nome desse movimento é um reconhecimento profundo de que a não-violência é a resposta à questão moral e política crucial de nosso tempo: a necessidade do homem superar a opressão e a violência sem recorrer à violência e à opressão (...).

Ainda creio que superaremos tudo isso. Essa fé dá-nos a coragem de enfrentar as incertezas do futuro. Dá forças aos nossos pés cansados enquanto continuamos a nossa marcha rumo à cidade da liberdade. Quando os nossos dias se tornarem lúgubres e cobertos por nuvens e as nossas noites se tornarem mais escuras que mil meias-noites, saberemos que estamos vivendo no tumulto criativo de uma civilização genuína que luta para nascer.»

OE: quando Pedro Nuno Santos se atirou para uma armadilha

 


«Serão os mesmos que pediram “responsabilidade” a Pedro Nuno Santos a falar dos seus ziguezagues e falta de clareza. Acham que, em negociações, não se avança e recua. E que se pode ser claro quando se gere uma derrota anunciada. Esta nunca poderia ser uma verdadeira negociação, porque duas forças só negoceiam quando as duas têm alguma coisa a perder. E, a Montenegro, tanto dava ter um OE com cedências mínimas como ir a eleições. Só precisava de gerir a responsabilização do PS, no que, ainda por cima, sabia contar com a ajuda de boa parte do aparelho mediático e dos derrotados internos do partido.

O que o PS fez na semana passada é o que devia ter feito desde o início, sem dar pasto a uma novela que apenas o desgastou: esperar pela apresentação do Orçamento de Estado, deixar que o governo decidisse, pelo conteúdo, que parceiro privilegiava, e tomar uma decisão. Como sempre aconteceu com governos minoritários sem acordos parlamentares. Por isso só tivemos negociações prévias, formais e públicas com a “gerningonça”.

Ao governo tudo isto interessava. Não só foi poupado à oposição durante meses, com a comunicação social concentrada no drama orçamental, como teve tempo para construir uma narrativa sobre a “inflexibilidade” do PS, primeiro, e a sua enorme cedência à esquerda, depois. Pedro Nuno Santos tinha o dever de saber que quem controla a narrativa, nestes processos, é quem está no governo. Estava no executivo quando BE e PCP foram fritos numa novela semelhante a esta, porque António Costa achava que estava chegado o momento de se ver livre deles e tentar a maioria absoluta.

Chegados aqui, o PS até poderia esperar pelo voto do Chega, mas isso seria, como se vê desde este fim de semana (fica para outro texto), demasiado arriscado. Luís Montenegro conseguiu o feito de ter Chega e PS no bolso, neutralizados, um a espernear e outro a ganhar tempo. Não porque seja um génio tático, mas porque lhe foram oferecidos meses de controlo da narrativa, com o PS a ter de reagir a quem governa e não o oposto.

Se voltarmos ao início disto tudo, temos de recordar que o Partido Socialista apresentou duas linhas vermelhas. No meu tempo, linhas vermelhas eram as coisas que nem se negociavam. E, essa é a ironia de tudo isto, foi mesmo a única coisa que se negociou. Os equívocos começaram logo no início da negociação, portanto.

O resultado final foi celebrado como ganhos de causa para o PS. Mas o que os socialistas conseguem é que o IRC desça cegamente um ponto percentual, em vez de dois. Nada mais para além disso.

No IRS Jovem, limitaram-se a salvar o governo de um chumbo no Tribunal Constitucional. Para Montenegro, é preferível ceder ao PS a ser desautorizado pelo TC. E, com as posições do FMI e do Conselho de Finanças Públicas, a proposta já estava politicamente morta. A coisa é tão óbvia que até Luís Montenegro reconheceu que a versão final não foi, na realidade, uma cedência do governo, apenas ficou equilibrada do ponto de vista de quem supostamente cedeu. Esta era a TSU deste governo, nascida para ser negociada. E, apesar de ser uma linha vermelha para o PS, não caiu. A versão final do IRS Jovem, que custa quase tanto como todo o excedente orçamental previsto, é a desejada por Montenegro, agravando uma injustiça geracional que será compensada com a redução do ordenado bruto de entrada.

O PS tem, de facto, um problema com isto: quem abriu este processo, cedendo ao populismo fiscal que não reteve um único jovem em Portugal, foi António Costa.

As duas grandes vitórias do PS neste OE são a tal descida de um ponto percentual no IRC, tão curta que todos reconhecem que, para um lado ou para outro, não chega para criar uma crise política; e o fim das portagens nas SCUT (autêntico imposto à interioridade e violação da palavra do Estado), conseguida de forma mais rápida e limpa, sem negociação. O governo bem pode meter a descida de IRS no deve e haver, que está a enganar as pessoas. Essa perda fiscal foi proposta pelo governo, o PS limitou-se a garantir (como no IRS Jovem) que não beneficiava apenas quem ganha mais.

Neste Orçamento, tem-se sublinhado a cedência à pressão dos professores, polícias e militares (pessoal de saúde nem por isso, que os privados precisam deles) para falar de um OE de esquerda. Mas ignora-se a utilização de recursos públicos para apoiar os seguros de saúde, a privatização USF e a preparação da privatização do pouco que resta de setor empresarial público – já para não falar da política fiscal, que esteve no centro do debate. Na realidade, temos um OE totalmente alinhado com o pensamento político da AD, juntando-lhe a distribuição preventiva de dinheiro, perante a incerteza do desfecho da votação, preparando as eleições. Por isso temos um enorme aumento da despesa e uma grande descida da receita.

Tudo o que PS tinha de propositivo, que estava fora das linhas vermelhas e que é ignorando para vender a teoria do “meio caminho”, desapareceu. Se ainda se recordam, o dinheiro recuperado do IRS Jovem e do IRC deveria ser destinado à habitação, actualização das pensões e negociação do regime de exclusividade no SNS e da redução da contratação de médicos em regime de prestação de serviços. Propostas apresentadas com grande grau de pormenor, aliás. Nada disso sobreviveu ou foi sequer negociado.

Era inevitável que esta negociação corresse assim. Porque isto foi uma falsa negociação. Compreensivelmente, o PS não quis que ela fosse como costuma ser, discreta e com recato. Porque sabia que o governo não se importava ir a eleições, responsabilizando o PS. E precisava, por isso, que as suas cedências e boa-vontade fossem visíveis. O PS queria partilhar o controlo da narrativa, para se livrar dessa responsabilização. Só que este jogo estava perdido à partida porque tinha menos trunfos: ao contrário da AD, não queria ir a votos. Não porque o governo esteja a governar bem, mas porque esteve seis meses a preparar o bolso dos eleitores. E porque as crises, nesta fase, tendem a beneficiar quem governa. Ora, quando se negoceia com quem nada tem a perder as coisas dificilmente podem correr bem.»


13.10.24

Um portão em Lisboa

 


Casa Abel José da Cruz, Av da República 87, Lisboa. 1906-1907.
Arquitecto: Jose Rodriguez Prieto.

Daqui.

Patetas irrevogáveis

 



13.10.1921 – Yves Montand

 


Yves Montand, de facto Ivo Livi, nascido italiano e naturalizado francês, cantor e actor, formou um dos pares mais célebres do cinema francês quando se casou com Simone Signoret em 1951.

Pretexto para recordar algumas das suas interpretações, entre muitas.

Paris, Paris:






Porque é tempo delas:




E, inevitavelmente:


.

O fardo perdido do homem branco

 

Bruno Catalano

«Quando em 1898, R. Kipling publicou o seu famoso poema – The White Man’s burden – exaltando a anexação colonial das Filipinas pelos EUA, a autoconfiança imperial do Ocidente estava no seu auge. Pelo contrário, a atual deriva de Washington, enredada na perigosa teia de guerras que julgava poder controlar – na Europa e Médio Oriente –, reconduz-nos ao tema, também vetusto, do declínio do Ocidente. Mesmo antes de, após o fim da guerra-fria, a hegemonia unipolar dos EUA ter iniciado o seu errático trajeto de intervencionismo bélico e incompetência estratégica, que nos conduziu à beira do abismo onde nos encontramos hoje, vozes sensatas, como a de Samuel Huntington, denunciavam o perigo da hubris norte-americana e ocidental, dessa arrogância de tentar impor uma cultura unidimensional a um mundo com múltiplas vozes e civilizações. Em 1996, aconselhava Huntington: “Uma postura prudente para o Ocidente seria não tentar suster a deslocação do poder, mas aprender a navegar em baixios, a suportar tormentas, a moderar as apostas e a preservar a sua cultura”. A mensagem não passou. O narcisismo imperial, o apoucamento do Outro, a ilusão de omnipotência, com muitos milhões de mortos e refugiados à mistura, povoaram estes trinta últimos anos. O genocídio praticado por Israel em Gaza, assistido pelo Ocidente, sinaliza um ponto de não retorno.

Será possível inverter esta rota de catástrofe para onde caminhamos? Para escolher o caminho da vida e reconhecer humildemente que o mundo pertence a toda a humanidade, e não só ao Ocidente, é necessária uma desintoxicação dos preconceitos e das opiniões arbitrárias. Sabemos bem que os factos permitem sempre diversas interpretações. Contudo, nos últimos três anos, no Ocidente, as interpretações sem substância escorraçaram toda a matéria de facto. Contra o império das convicções, gostaria de partilhar com o leitor alguns indicadores essenciais do mundo concreto e mais vasto, além das fronteiras banhadas pelo Atlântico Norte. Faço-o em apoio duma dupla tese: já vivemos num mundo multipolar; o Ocidente já não constitui o principal motor portador de futuro.

Sabemos que a reorganização do sistema internacional se está a efetuar através de uma cooperação de países conhecidos como BRICS, com muitas divergências entre si, mas unidos pela recusa da atual definição das regras do jogo do poder mundial, ditadas pelo Ocidente, reunido no G7. Aliás, o chefe da diplomacia de Nova Deli, S. Jaishankar, acusa esse grupo de ser um clube encerrado sobre o seu umbigo... Recordemos que o G7 é formado pelos EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Japão e Canadá. Por seu turno, os BRICS começaram com 4 países (Brasil, Rússia, Índia e China). Em 2011, a África do Sul foi admitida. No final de outubro, na 16.ª conferência anual da organização, a realizar em Kazan, Rússia, terão entrada oficial mais 5 países: Arábia Saudita, Irão, Emiratos Árabes Unidos, Egipto e Etiópia. É curioso referir que a Rússia durante vários anos pertenceu aos dois “clubes”, pois entre 1998 e 2014 foi também membro do G8, até ser expulsa quando a Crimeia regressou à soberania de Moscovo.

Se compararmos o peso do G7 e dos BRICS no PIB mundial (por paridade do poder de compra) verificamos uma mudança dramática entre 2000 e 2024. Em 2000, o G7 representava 43, 28% do PIB global contra 21, 37% dos BRICS. Em 2018 deu-se a inversão: 31, 84% contra 32, 33%. Estima-se este ano um recuo do G7 para 29,64% contra 35, 43% dos BRICS (dados da empresa alemã, Statista).

No plano mais fino da ciência e tecnologia (C&T), os resultados são ainda mais surpreendentes. Em agosto foi publicado um relatório do Australian Strategic Policy Institute, um think-tank ligado ao governo de Camberra, sobre os países que lideram a C&T em 64 áreas críticas para o futuro: a defesa, o espaço, a energia, o ambiente, a inteligência artificial (IA), biotecnologia, robótica, cibernética, computação, materiais avançados e áreas-chave da tecnologia quântica. Estuda-se o período de 2003 a 2023. Também na C&T, o Ocidente regride. Em 2003, os EUA lideravam em 60 das 64 tecnologias. Em 2023, lideram apenas em sete. A China, pelo contrário, passou do lugar da frente em três tecnologias (2003) para 57 das 64 tecnologias em 2023. Se a UE contasse como país, lideraria apenas em duas tecnologias (sensores de força gravitacional e pequenos satélites). Outros países dos BRICS têm lugar destacado: a Índia está entre os cinco primeiros países em 45 das 64 tecnologias, o Irão em oito, a Arábia Saudita em quatro.

E que faz o Ocidente – os EUA e a mimética EU – perante essa explosão de disciplina, criatividade e inteligência de povos que antes, por si foram colonizados e subjugados? Rearma-se, decreta estratégias de contenção, promulga sanções, instaura políticas protecionistas, que no passado não consentia aos outros. Será que o Ocidente desconhece estar a humanidade inteira perante desafios existenciais, que exigem cooperação obrigatória para termos alguma possibilidade de sucesso? Poderemos contar apenas com a nossa comprovada declinante imaginação para dar conta da brutal crise ambiental e climática, das pandemias emergentes, dos riscos de descontrolo tecnológico, como é o caso da IA ou das biotecnologias? O imperialismo civilizador de Kipling desaguou num niilismo cru e nu, que reprime pela força o direito de todos os povos e indivíduos habitarem a Terra como sua pátria.»