«Desde “Obrigado José Sócrates”, ou “O Menino Guerreiro”, para Pedro Santana Lopes, que um líder perseguido não tinha direito a um hino. Desta vez, veio em sertanejo cavaquista: “Deixa o barco navegar/Não é hora de parar/A esperança vai renascer/Deixa a gente ser feliz/Deixa o Luís trabalhar/Que um novo futuro vai acontecer” E depois vem o refrão: “Deixa o Luís, deixa o Luís, deixa o Luís, deixa o Luís trabalhar/Ele tem palavra/Ele tem valor/Deixa o Luís, deixa o Luís trabalhar.”
Não vou brincar com o “trabalho” de Montenegro na Spinumviva. Fico-me pela referência literária a Cavaco Silva, quando, perante as críticas, a oposição, o escrutínio, os contrapesos democráticos a que chamou “forças de bloqueio” a todos os limites ao seu poder, apelou à anemia democrática em nome da eficácia da governação. “Deixem-me trabalhar” foi, no seu tempo, o grito autoritário do líder que se julga acima das instituições que circunstancialmente dirige, como se as regras e a ética que limitam o seu trabalho não fossem o trabalho da democracia.
É sabido que Luís Montenegro tem Cavaco Silva como mestre. E o ego do antigo líder, que o País apreciou, mas nunca com a devoção de que se acha merecedor, só tem uma lição a dar ao discípulo: se fizeres como eu fiz, se fores como eu fui, tudo correrá pelo melhor. E desde que chegou ao poder é isso que Montenegro tenta fazer. A estratégia da queda rápida do governo era a mesma de 1987, só que, não havendo o cão da moção de censura, caçou com o gato da moção de confiança. De resto, tudo igual: exibir um desrespeito altivo por jornalistas e oposição e, perante o escrutínio, nunca oferecer mais do que indignação. Até tem o desplante de dizer que o “Expresso” e o “Correio da Manhã” não escrutinavam assim o PS. Que o digam Costa, Galamba e Pedro Nuno Santos.
Nada em Montenegro é autêntico. Nem a arrogância, nem os silêncios, nem a indignação. Montenegro era um cacique local que fez carreira em pequenos esquemas (independentemente da sua legalidade, que é outro debate). Está muito longe de ser o único, no PS, no PSD ou em qualquer partido que se aproxime do poder. Só que, por uma conjugação dos astros, chegou a primeiro-ministro. Era quem lá estava, depois de vencer um homem competente e sério, mas sem ponta de carisma (Jorge Moreira da Silva), quando chegou a inevitável mudança de ciclo. Depois de oito anos de poder do PS e com a saída de Costa, tinha de ser. Como teve de ser quando Cavaco partiu. E, mesmo assim, ficou-se por 50 mil votos de vantagem face a um partido desgastado por tanto tempo a governar e um opositor também desgastado, apesar de acabado de chegar à liderança do PS.
Quando o silêncio deixou de funcionar e o passado veio ao de cima, Montenegro disse a frase que é o seu lema ético: “o primeiro-ministro não fez nem mais nem menos do que faz qualquer português". É com esta autocomplacência nacional que conta. A que ouvi numa conversa, este fim de semana, a um eleitor da AD: Montenegro não será flor que se cheire, mas não é altura para mudar, e, de qualquer das formas, “são todos iguais”. Tenho dito que o voto no Chega não é de indignação ética, mas de acomodação. Por isso os seus escândalos não o afetam. É nessa mesma acomodação que Montenegro aposta.
Quando era óbvio que ia macaquear Cavaco, usando a mesma arrogância altiva e a mesma gestão de silêncio para esconder as suas próprias fragilidades e inseguranças, escrevi que, no tempo das notícias 24 sobre 24 horas e das redes sociais, seria outro o escrutínio. Mas talvez o excesso de ruído seja igual ao silêncio de quando só havia RTP (só no fim do mandato de Cavaco as coisas mudaram). Veremos a 18 de maio. Uma coisa é certa: este hino apela ao passado. É, na política, na ética e na estética, uma cópia pirata do cavaquismo. Como Montenegro.»