«Há um estranho consolo em discutir programas escolares em julho. A sala está vazia, os quadros limpos, os corredores silenciosos. E é nesse silêncio que surgem as polémicas mais ruidosas: mudanças no currículo, ameaças ao futuro da juventude, fantasmas ideológicos escondidos em parágrafos. Desta vez, o que se discute é o lugar da sexualidade na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Ou, mais exatamente, o seu apagamento.
Diz o Governo que não se trata de censura, que é só uma pequena reorganização. A sexualidade passará a integrar a área da saúde, dissolvida num domínio mais amplo, mais técnico, mais asséptico.
A reação foi previsível: gritos de alerta, colunas inflamadas, indignação moral de um lado e do outro. Como se a escola estivesse prestes a tornar-se campo de reeducação progressista ou, inversamente, reduto do puritanismo restaurado. Como se uma aula de quarenta e cinco minutos por semana — quando existe — fosse o campo de batalha final da nossa consciência cívica.
É que o problema é esse: a aula muitas vezes não existe. A Fenprof estimou que, no último ano letivo, mais de um milhão de alunos ficaram sem professores em pelo menos uma disciplina. O Ministério não conseguiu desmentir, mesmo depois de ter encomendado um estudo à KPMG queterminou em incógnita. Não sabemos quantos alunos têm professores, mas sabemos que as aulas de Cidadania vão ser reformuladas. Reformuladas, ainda que para muitos não sejam sequer leccionadas.
Discutimos um subgrupo de uma disciplina que estatisticamente não chega à sala. É um debate na torre de marfim, onde se discute com seriedade algo que não existe com regularidade. Não é reforma nenhuma. É distração.
A eliminação da sexualidade deste programa não é um acidente técnico, nem um simples erro de formulação. É um gesto. Um piscar de olho. Uma forma de dizer à extrema-direita que estão estamos atentos aos receios que os atormentam. O Governo, neste caso, prefere evitar o alarme das famílias do que enfrentar o analfabetismo emocional. Prefere agradar a quem se ofende com a palavra “sexo” do que ensinar a diferença entre toque e violência, entre desejo e coação, entre intimidade e vergonha.
Dizer que a educação sexual nas escolas é doutrinação ideológica não é só falso; é perigoso. A sexualidade, enquanto tema educativo, não nasce da agenda woke, dos anti-cristo, nem da militância progressista. Está consagrada, como bem lembrou a Susana Peralta, em tratados internacionais, normas da OMS, estratégias europeias sobre saúde reprodutiva. Desde 1990 que a Convenção sobre os Direitos da Criança exige que os Estados protejam os mais novos através de educação sexual. A Unesco atualizou em 2018 os seus standards, lembrando que ensinar sexualidade não é ensinar comportamento, é ensinar consciência cognitiva, emocional, física, social.
Quando se fala de sexualidade nas escolas, fala-se de prevenir abusos. De ensinar o que é consentimento. De nomear o corpo para que o corpo não se torne tabu. Fala-se de proteger. De informar. De cuidar.
A educação sexual não serve para inculcar ideologia. Serve para impedir silêncio. Onde não se ensina, perpetua-se o risco de ignorância, de violência, de culpa mal dirigida. O risco de crescer sem saber o que é, sem conseguir nomear, sem amparo.
Por isso, o verdadeiro escândalo não é o que está escrito nos novos documentos. É o que não está. Não há professores, não há aulas, não há garantias. Mas há zelo na escolha dos temas de uma disciplina para agradar aos pais de Famalicão e a ideólogos radicais da direita radical. Há prudência calculada. Há medo de desagradar a quem grita mais alto.
A escola pública é, por definição, plural. E essa pluralidade exige coragem de se ensinar o que custa, de nomear o que incomoda, de incluir o que se prefere esquecer.
Apagar a sexualidade das aulas de cidadania, é mais do que uma opção pedagógica, um gesto simbólico que retira o corpo da formação do cidadão. Como se a cidadania pudesse ser ensinada sem desejo, sem limite, sem toque e os alunos fossem espíritos puros a flutuar acima do corpo que habitam.
É sempre mais fácil falar de polémicas que não se concretizam do que resolver os problemas reais que já estão em curso. E é por isso que discutimos o conteúdo de uma aula que ninguém tem. Enquanto isso, no mundo real, os alunos esperam por professores que não chegam. E os seus corpos, esses, não esperam por ninguém.»