«Perda de vidas e de haveres de trabalho árduo em vilas e aldeias de Portugal são a mais negra expressão de uma “modernidade” injusta, discriminatória e divisória. Nesta “modernidade” a cidade esmaga a aldeia, o interior esvazia-se e o litoral atafulha-se, o consumo desenfreado erradica a poupança geracional, a exaltação do novo definha o respeito pelo velho, a memória esvai-se na ditadura do presente e até o valor útil da vida se hierarquiza e a morte é desigual.
Um qualquer grupo pago pelo Estado (ou seja, nós) reclama, grita, faz greve, tem tempo mediático, para no fim, recolher os frutos. Os pobres, os velhos, as pessoas sós, os artesãos e pequenos agricultores sem férias, não têm esse poder da rua. Nem muito, nem pouco. A sua escassa apetência eleitoral (até as sondagens os ignoram) torna-os politicamente irrelevantes. Não têm voz ou a sua voz não chega ao poder. E as notícias dão mais importância a uma qualquer parvoíce urbana do que à genuinidade rural.
Tudo em nome de um utilitarismo pérfido e injusto e de um economismo desumanizado. A aldeia deixou de ter extensão de serviços essenciais públicos, posto de saúde, policial e dos correios, agência bancária, escola, estradas e transportes facilitadores, sinal televisivo e redes de telecomunicações estáveis. Como se podem fixar jovens onde os quase únicos empregos são os do poder local (partidários) e de IPSS? O que se espera quando se fecha uma escola porque não é “rentável” ou se atrasa uma minudente infraestrutura básica porque é muito custosa per capita? Agora tudo online, que importa se o aldeão não sabe trabalhar com as maquinetas? O mundo virtual de amanhã segregou o mundo real de ontem, o deles. Lá, já quase não se nasce, o lar de idosos cresce e o cemitério aumenta.
As leis da economia utilitarista têm prevalecido brutalmente sobre as leis da Natureza. O campo está submetido a uma indisfarçável cultura do descarte, da indiferença e da insensibilidade, apenas abanada por dramas como os que agora aconteceram, com compulsivos anúncios de medidas, às vezes, para mais tarde jazerem esquecidas. A aldeia é ofendida por quem governa na e para a cidade: “têm de ser mais proactivos”, “não me faça rir a esta hora”, “têm de ser resilientes” (esse anglicismo de cidade, parvo, distante e ora em moda, que, na aldeia, felizmente, não entendem). A aldeia é dizimada pela “via rápida” da política impositiva do actualismo, que despreza a política do tempo que está para além do tempo eleitoral ou da sondagem seguinte. Somos mais dotados em tecnologia, mas mais pobres em humanismo e em Natureza. Discutimos até à náusea 0,1% do PIB que não representa mais 1,4 euros por mês para cada habitante, ao mesmo tempo que, só neste século, 2.530.000 hectares foram destruídos, sem que o tal PIB tenha dado sinal de alarme. E porquê? Porque este indicador não considera a depreciação do “capital natural”. Se tal sucedesse, a destruição de floresta teria provocado diminuição sensível do PIB, tal qual uma família fica mais pobre depois da devastação da sua propriedade. E, aí, outro galo cantaria na política e nos políticos dos números e das estatísticas.
Bem resumiu o Presidente da República na sua notável, sábia e humanista intervenção: “olhar para os dramas de pessoas de carne e osso com a distância das teorias, dos sistemas ou das estruturas […] é passar ao lado do fundamental que é o que vai na alma dos portugueses”.
Ou como escreveu Tólstoi: “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. O problema é que há muita gente e políticos que não sabem o que é a aldeia, dizem que não têm orçamento para a tinta e a universalidade não passa dos seus liliputianos gabinetes.»
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