23.5.18

Porque a quantidade de vida adicional não compensa a qualidade de vida perdida



Num texto exclusivo para o Expresso, o investigador justifica porque é a favor da eutanásia, cuja despenalização será discutida e votada na próxima terça-feira no Parlamento, que apreciará quatro projetos de lei.

Narrativas diferentes sobre a morte

“Neste mundo nada é garantido, exceto a morte e os impostos”
(… in this world, nothing can be said to be certain, except death and taxes)
é uma das frases mais conhecidas e irónicas de Benjamin Franklin

Todos morremos. Há pouco mais de um século, o nosso tempo médio de vida andava pelos 40 anos. Hoje, em muitos países, incluindo Portugal, mais do que duplicamos esse valor, e há quem pense que possamos alcançar os 100 anos nas próximas décadas. Esta evolução tem claramente a ver com os avanços científicos, tecnológicos e sociais das nossas sociedades. Lá vai o tempo em que uma pneumonia era quase sempre mortal, ou em que os que estavam próximos do fim eram simplesmente abandonados à sua sorte.

Do ponto de vista da evolução, depois de nos reproduzirmos e de garantirmos que os nossos descendentes sobrevivem sem a nossa ajuda, deixamos de ser úteis para a espécie. Mas as comunidades humanas aprenderam, felizmente, a valorizar mais do que a simples reprodução. Hoje, reconhecemos que as sociedades são tanto mais ricas e fecundas quanto mais forem capazes de construir ambientes promotores de capacidades como o amor, a curiosidade, a imaginação, a compaixão, a partilha e a inovação, para os seus cidadãos. Capacidades que foram conquistadas ao longo de séculos em lutas árduas e sangrentas pela nossa liberdade e autonomia (não só política, mas também religiosa, social e pessoal). Liberdade e autonomia essas que continuam frágeis, porque nem sempre essa valorização do “outro” é reconhecida e retribuída.

Chegamos a uma situação em que a evolução do conhecimento, nas ciências naturais, sociais e humanas, não se limitou a dar-nos mais anos de vida; deu-nos também, frequentemente a capacidade de usufruir deles física, emocional e racionalmente. Infelizmente, nem sempre estes anos adicionais de vida são acompanhados da qualidade desejada.

E é sobre esta questão que gostaria de me debruçar. O que acontece quando alguém tem a consciência clara de que a perda de autoestima, de dignidade e de independência, assim como o sofrimento físico e psicológico que o esperam, se irão acentuar nas semanas, meses ou até anos de vida de que possa vir ainda a usufruir? Todos conhecemos histórias dramáticas sobre situações que acompanhámos pessoalmente ou de que nos chegaram relatos detalhados. E todos nós “usamos” essas histórias para justificarmos a nossa posição em relação a este tema. Se, para uns, a resposta óbvia são os cuidados paliativos, para outros, o desejo e a possibilidade de pôr fim rapidamente a esse sofrimento são também muito claros. Se for praticamente impossível para os que entraram nos cuidados paliativos poderem sair deles, como nos descreve Philippe Bataille na sua obra de 2012, as decisões antecipadas são ainda mais relevantes.



Neste contexto, o diálogo entre aqueles que consideram a vida humana como uma “dádiva” e os que, pelo contrário, olham para a vida humana como um processo de construção e consolidação individual e social, torna-se difícil, senão impossível. Nos debates, focamos a nossa atenção sobre o que fortalece a nossa posição/convicção e ignoramos o resto. Uns debruçam-se sobre o conceito de “obstinação terapêutica”, enquanto outros sobre a noção da “prepotência da autonomia”.

Os que defendem os cuidados paliativos afirmam que, em situações de grande fragilidade, é relativamente fácil influenciar/convencer a pessoa de que não vale mesmo a pena fazer mais nada. Curiosamente, este argumento é verdadeiro também para quem deseja convencer a pessoa exatamente do contrário.

Formas diferentes de terminarmos a nossa vida se assim o desejarmos, estão disponíveis. Mas são quase sempre decisões e ações solitárias e frequentemente angustiantes. Continua a ser punível na lei a assistência por parte de outrem, em particular por um profissional de saúde, ao suicídio de alguém que o tenha solicitado repetidamente enquanto consciente. E é esta, na minha opinião, a questão principal em discussão no debate sobre a morte assistida.

Invoca-se a noção de que é o medo da dor insuportável que faz com que alguém queira terminar rapidamente o seu sofrimento, e que a morte não é solução, pois existem muitas formas de controlar a dor. Mas os efeitos secundários das elevadas doses necessárias destes fármacos são por vezes tão intoleráveis como a dor que tentam controlar. E é perfeitamente concebível que para muitos (em que eu me incluo) não é só a dor física que é intolerável. É também a ideia de que a quantidade de vida adicional não compensa a qualidade de vida perdida. E suspeito que quanto mais rica tiver sido essa qualidade de vida de alguém, menos disposta estará a valorizar semanas ou meses de vida adicionais.

Quando começamos a sentir que a nossa continuada existência deixou de ter qualquer relação com as experiências físicas, racionais ou emocionais que mais valorizamos, e que sentimos a nossa autoestima cada vez mais fragilizada, o fim parece perfeitamente razoável e até desejável para muitos de nós. Pensar desta forma não é nem aberrante, nem patológico.

Outro conceito é o de que os profissionais de saúde devem tratar, curar se possível e acompanhar os doentes, nunca matar ou ajudar a morrer. O que faz todo o sentido e deve continuar a ser o seu principal objetivo. Mas só quem está muito mal informado ou se recusa a ver a realidade é que não tem conhecimento de inúmeros casos de ajuda, por profissionais de saúde, a doentes perto do fim que querem acelerar a sua morte. Tudo feito às escondidas, à margem da lei, com enormes riscos de denúncia e com consequências profissionais gravíssimas. Não seria muito mais razoável e honesto evitar esta situação?

Atualmente, várias são as vozes que invocam a ideia de que a morte assistida seria uma forma grosseira de poupar dinheiro ao Estado. Considero essa ideia ainda mais insultuosa do que a outra, oposta, que também é invocada por alguns, de que “o negócio da morte é muito lucrativo”. Tendo vivido muitas situações de fim de vida de familiares e amigos, há várias décadas, ainda fico surpreendido com a arrogância que algumas afirmações demonstram.

Ainda outro argumento (o do slippery slope) é o de que os países onde se dará assistência médica aos que querem morrer passarão a ser centros mundiais de morte assistida descontrolada. Nenhuma das poucas experiências que existem neste domínio, tanto nos EUA como na Europa, comprova essa afirmação. E todas elas mostram que, onde é legal, o processo é complexo e exigente – muito diferente do que se passa onde é criminalizado, e por isso mesmo praticado às escondidas e sem qualquer controlo.

No passado recente, em Portugal, este mesmo argumento (o do slippery slope) foi usado e abusado no debate da estratégia para a toxicodependência e da interrupção voluntária da gravidez. Não só as previsões não se concretizaram, como toda a evidência recente mostra exatamente o contrário.

Uma das soluções sugeridas e que tem ganho alguma aceitação é a de não fazer nada para tentar alongar o tempo de vida que resta, quando a equipa médica decide que o paciente está em fase terminal. Esta solução, em que se mantém o paciente com, ou por vezes até sem, a hidratação mínima necessária, e que pode durar dias ou semanas, é vista por muitos (onde eu me incluo) como cruel e insensível.

Por todas estas razões, e tantas outras que são sobejamente conhecidas, acho que a morte assistida deve ser legalizada e regulamentada, e que o processo seja o mais exigente e rigoroso possível para evitar ao máximo aquilo que hoje acontece muitas vezes sem qualquer supervisão.

Para mim, a qualidade e a dignidade da minha vida e da minha autonomia são mais importantes que a quantidade de vida e suspeito que isso é verdade para muitos cidadãos. O dilema está em decidir quem deve ou pode dar a ajuda solicitada, e se essa ajuda deve ser descriminalizada.

Os profissionais de saúde estão divididos sobre este assunto. Ainda bem. Só mostra que a ética também faz o seu caminho. Seria inconcebível pensar que uns são mais detentores da verdade do que outros. E felizmente já ninguém se arroga o direito de definir o que é a verdadeira compaixão.

Gostava de terminar com uma observação que considero, no mínimo irónica. A história da humanidade está cheia de exemplos de pessoas que escolheram e/ou aceitaram morrer para não abdicarem das suas convicções, da sua honra, da sua dignidade, da sua autonomia ou da sua verdade. Estas pessoas são normalmente admiradas e até por vezes vistas como mártires. O debate em que estamos empenhados parece ignorar a ideia de que a forma como cada um quer morrer é provavelmente uma das decisões mais importantes da sua vida.

“A nossa vida depende da vontade de outros; a nossa morte da nossa vontade própria” 
(La vie dépend de la volonté des autres, la mort de notre volonté propre)
excerto do livro sobre “Montaigne”, de Stefan Zweig» 

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2 comments:

Teresa Varela disse...

A conselho de uma amiga, li o seu artigo.
Está bem estruturado, toca os pontos principais de divergência entre os que defendem a eutanásia e os que a condenam, mas, de resto, não me convence, pois a sua análise pessoal da situação, na minha opinião, é demagógica.
Tenho uma posição quase equidistante dos contra e dos pró eutanásia. Pelo que passo a referir o que me levou a comentar
1. Nem o senhor, nem ninguém, sabe o que vai pensar e sentir, se e quando estiver numa situação de necessitar de cuidados paliativos.
Neste momento, o senhor acha que se estivesse nessa situação quereria poder recorrer à eutanásia e era o que faria. Mas, note, esse é o seu pensamento e sentimento agora, a frio, sem na verdade alguma vez ter tido a experiência de viver essa situação.
E, na verdade, a experiência diz-nos que muitos dos doentes oncológicos que necessitam de paliativos, ao invés de pedirem que lhes acelerarem a morte, agarram-se a mais um dia de vida. Outros pedirão o contrário. Mas, de novo, afirmo, que o que vai sentir e pensar, se passar por uma situação destas, só saberá quando lá estiver.
2. Os medicamentos para o controlo da dor, como efeitos secundários, causam, principalmente, sono e alguma confusão mental. Não compreendo o seu argumento.
3. "Atualmente, várias são as vozes que invocam a ideia de que a morte assistida seria uma forma grosseira de poupar dinheiro ao Estado. Considero essa ideia ainda mais insultuosa...". Considera? Porquê? A verdade é insultuosa? A verdade pode ser triste, dramática, execrável, dolorosa, vergonhosa, agora, insultuosa, não compreendo. Acha que estamos a insultar quando constatamos o óbvio?

Teresa Varela disse...

4. Ainda ninguém me esclareceu, talvez o senhor me possa esclarecer. O que diabo é uma morte indigna?
5.Há quem afirme que os paliativos são uma espécie de eutanásia em câmara lenta. Na verdade, toda a medicação utilizada nos paliativos encurta o tempo de vida, mas, ao contrário da eutanásia, o objetivo não é acelerar a morte, mas dar o maior conforto e qualidade de vida, sendo que o efeito colateral mais evidente é acelerar a morte.
6. "Ainda outro argumento (o do slippery slope) é o de que os países onde se dará assistência médica aos que querem morrer passarão a ser centros mundiais de morte assistida descontrolada." Não sei se são considerados ou não. Sei que têm sido eutanasiados doentes com Alzheimer, logo, não deram consentimento algum.
Sei que têm sido eutanasiadas pessoas com depressão e vi, como o senhor deve ter visto, a reportagem que deu origem à prisão do médico holandês, o qual facultou a eutanásia a, pelo menos, uma idosa com depressão, causada pela morte da filha, sem qualquer doença grave. Vivendo o senhor no mundo real, tal como eu, sabe, com certeza, que há muitos filhos que abandonam os pais nos hospitais, os depositam nos lares, os abandonam, não os visitando nas suas casas, os que os maltratam e se apropriam das suas reformas e economias. Há sim senhor, há isto tudo no mundo.
Estes filhos, caso tenham algo a herdar, ou trabalhos de que se possam livrar, serão os primeiros a influenciar os seus pais a recorrer à eutanásia.
Esta verdade é insultuosa? Não é apenas execrável, triste e dolorosa.
Posto isto, não sou contra a Eutanásia, quem sou para dizer o que cada um deve fazer com a sua vida? Mas, só aceitarei uma legislação da eutanásia que me garanta quase a 100% que não será possível eutanasiar uma pessoa que se encontra deprimida ou que está a ser manipulada ou influênciada por um conjunto de pessoas ou situações exteriores a ele própria.
A depressão é um estado alterado das funções eletroquímicas do cérebro, logo, ninguém pode, ou não deve, tomar decisões de vida ou morte em semelhante estado
Se os filhos maltratam, abandonam ou exploram os seus pais, tem que haver uma fiscalização dessas situações e encontrar soluções para que esses idosos recebam os cuidados, atenção e apoio de outros que não os seus filhos.
Somente depois de se garantir que fizemos tudo o que nos foi humana e tecnicamente possível, apresentámos todas as alternativas, garantimos todos os apoios, incluindo o afetivo, psicológico e emocional, repito, somente nessa altura é que eutanásia se poderá concretizar, caso o doente mantenha a mesma ideia.
Na verdade, meu caro senhor, ninguém quer morrer, nem mesmo os suicidas. O que eles querem é acabar com a dor e o sofrimento.
Então, no que temos que apostar é na vida e encontrar e usar todos os meios ao nosso alcance para aliviar ou acabar com essa dor e esse sofrimento.