23.7.21

Assim na terra como no céu



 

“Queremos lutar contra a desigualdade ou contra a pobreza? Esse imposto [sobre as grandes fortunas] consegue reduzir a desigualdade, mas pela via não inteligente: expulsando ou empobrecendo os ricos", Flávio Rocha, empresário brasileiro

Eu é mais Boulos

Cada vez que se fala em taxar as grandes fortunas, logo as almas mais liberais se alevantam para agitar o fantasma de que o capital é fluido, o mundo é grande e está cheio de paraísos fiscais com fama de abrir os braços a toda a riqueza da sua mãe que os visita. E até lembram o que aconteceu em França quando o Presidente François Hollande se decidiu por obrigar os ricos a pagar um imposto por serem ricos. Esta semana, o empresário brasileiro Flávio Rocha, apoiante do Presidente Jair Bolsonaro, lembrou “o exemplo desastroso” de Hollande para demonstrar uma coisa que “é cruel, mas é a dura realidade”, que taxar os ricos tem “um potencial de arrecadação pífio”, porque os ricos, de tão patriotas que são, agarram no seu dinheirinho e vão comprar uma pátria diferente (lembremos os vistos gold que o então ministro Paulo Portas tanto vendeu como uma galinha dos ovos da arrecadação de divisas). Guilherme Boulos, ex-candidato presidencial e ex-candidato a governador de São Paulo, escreve na Folha de S.Paulo, que esse “dogma” de que um imposto sobre as grandes fortunas “geraria fuga de capitais, apoiado no caso francês, é questionável”, não só porque a taxação não se centra em investimentos, mas no património individual, também porque a “pequena base de incidência permite maior controle da evasão para paraísos fiscais”. O empresário recorre ao argumento gasto de que não se combate a desigualdade empobrecendo os ricos, mas enriquecendo os pobres, esquecendo a grande regra dos recursos finitos: para que um seja mais rico o outro tem de ser mais pobre. Além de que nenhum rico quer que o pobre enriqueça, se não onde iria arranjar alguém para lhe cortar a relva? Ou para limpar o vidro da nave espacial?

Três estarolas do espaço

Foi assim no desenvolvimento da aviação, foi assim no desenvolvimento do automóvel. Primeiro vieram os milionários aventureiros e os seus caros brinquedos, a seguir veio a indústria atrás, a generalização e a massificação. No entanto, há uma grande diferença para os esforços aventureiros de Santos Dumont, dos irmãos Wright, de Ferdinand Verbiest ou Karl Benz. O que Richard Branson, Elon Musk e Jeff Bezos estão a desenvolver não são máquinas para explorar o espaço, o que estão a criar é um negócio altamente lucrativo de brincadeiras pseudo-espaciais para gente com demasiado dinheiro acumulado e que prefere estoirar 28 milhões de dólares para sair uns minutos da atmosfera terrestre a investi-lo em algo importante para o desenvolvimento do planeta. Aquilo que estes milionários estão a fazer é subir muito alto para melhor exibir a sua indiferença pelo mundo preso cá em baixo por uma pandemia que cavou mais fundo o fosso das desigualdades, matou 4,1 milhões de pessoas e acrescentou mais 810 milhões de pobres ao rol dos que já havia. As experiências dos três estarolas espaciais deviam ser transmitidas pelas televisões com bolinha vermelha no canto superior do ecrã tal o grau de obscenidade que envolvem. Pornografia é uma palavra que vem do grego “pornos” (prostituta) e “graphô” (escrever ou gravar) e ao ver subir o gigantesco falo de Bezos para se exibir no espaço só podíamos pensar que o multimilionário, que anunciou o fim dos testes gratuitos da covid aos seus funcionários a partir de 30 de Julho (deve ser para poupar para os combustíveis queimados pelo seu foguetão), nos estava a enviar a mensagem nada subliminar: agora que acabei com as livrarias em terra vou fornicar o espaço.

Manipulação de preços

Ninguém chega a multimilionário sem pisar sobre os outros. O negócio de acumulação financeira capitalista não é um espectáculo para os mais sensíveis. A frase “não é pessoal, são só negócios” foi cunhada por quem nesse momento espetava uma faca nas costas de outro. Jeff Bezos e a sua Amazon transformaram-se num enorme eucalipto à escala planetária que suga a água de todas as outras árvores e se impõe, pelo seu rápido crescimento, a qualquer outra espécie. Como presença dominante no mercado de distribuição pode dar-se ao luxo de fazer o que quer, nomeadamente aumentar os preços de forma exorbitante. Esta quarta-feira, o sindicato Unite apresentou queixa contra a Amazon na Autoridade de Mercados e Concorrência britânica por manipulação de preços durante a pandemia. O sindicato encontrou 50 produtos comercializados “a pelo menos o dobro do seu preço habitual” em 2020. Entre os artigos vendidos a preços excessivos estão sabão, spray antibacteriano, sabonete líquido, lixívia, termómetros, máscaras faciais, toalhetes, papel higiénico, luvas descartáveis, produtos sanitários, pasta de dentes e até vitaminas, chá e comida enlatada. O sindicato tem a decorrer uma campanha denominada Action on Amazon que vai realizar protestos contra a empresa de Bezos um pouco por todo o Reino Unido, pelos preços, mas também pelas “más condições de trabalho e tácticas anti-sindicais”. Os muitos milhões para alimentar a corrida ao espaço têm de vir de algum lado.

A prova de que a acumulação de riqueza se tornou obscena está nos números apresentados pela empresa de consultoria Capgemini: em conjunto, os milionários do mundo têm uma fortuna de 67 mil biliões de euros (o trillions dos Estados Unidos) e os super-ricos, aqueles que possuem um património superior a 30 milhões de dólares aumentaram a sua fortuna em 9% durante a pandemia. Como dizem os populares, o dinheiro gera dinheiro e isso nunca foi tão verdade como hoje em que uma pessoa pode amassar uma riqueza de milhões investindo em moedas virtuais. Toda a gente se lembra da mensagem de George W. Bush há quase 20 anos, quando alentava os americanos a comprar para recuperar o espírito do país depois dos atentados do 11 de Setembro, como se o dinheiro a circular fosse a única forma de demonstrar a grandiosidade da América. Na série The Newsroom, a maneira que a produtora MacHenzie McHale tem de espicaçar o apresentador de telejornal Will McAvoy do marasmo jornalístico de trabalhar para as audiências é levando uma estudante universitária num debate a pedir-lhe para dizer o que torna a América no melhor país do mundo. McAvoy explode num debitar de estatísticas que demonstram exactamente o contrário, que os Estados Unidos, de tanto fomentar o dinheiro como único valor, há muito deixaram de ser um país de referência. Sam Mattis, atleta olímpico norte-americano, formou-se na Wharton School da Universidade da Pensilvânia (onde também se formaram Elon Musk e Warren Buffett, um dos mais ricos do mundo), teve uma oferta de emprego para o JPMorgan Chase assim que saiu da universidade, mas trocou tudo pelo sonho dos Jogos Olímpicos. Um sonho que se paga caro na pátria do dinheiro: nos últimos cinco anos tem vivido à míngua, entre o desemprego e trabalhos mal pagos. Quanto vale lançar um disco em Tóquio?»

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