25.1.24

Portugal, terra de islão

 


«Quando se vive em França, num dos países com maiores comunidades muçulmanas da UE, conhece-se bem o que é a islamofobia nas suas mais diversas expressões, desde as microagressões às agressões mais violentas, do discurso descomplexado do comentariado televisivo até a políticas governativas, passando pela violência e controlo policial com base étnico-racial. São vítimas de islamofobia não somente as pessoas efetivamente muçulmanas, mas também as que pareçam muçulmanas, árabes, magrebinas, na qual me incluem muitas vezes porque não sou imediatamente identificável como “luso-cabo-verdiana”.

Muitos portugueses em França também vivem esta experiência de por vezes serem racializados como árabes e, portanto, como muçulmanos, visto existir em França uma verdadeira dificuldade em separar duas realidades que podem, evidentemente, ser distintas. Não é só em França que os portugueses podem ser vistos como não-brancos ou como “brancos honorários” – para tomar emprestada a expressão da socióloga Margot Delon, no seu artigo “Des 'Blancs honoraires'?” –, nos EUA isso também acontece e os neonazis do Norte da Europa costumam gozar com a “aparência magrebina” dos nossos neonazis nacionais. A racialização é uma construção fluida que pode variar “conforme a hora e o local onde estiverem”.

Em Portugal, vive-se uma relação ambígua com todas estas complexidades: por um lado, gostamos de nos dizer cosmopolitas, os reis da miscigenação por esse mundo fora; e por outro, existe a busca, dentro de fronteiras, de uma caricata brancura pura inexistente. Esta relação é problemática quando se trata de pessoas negras, mas também em relação a pessoas de origem árabe e muçulmana. Existe uma espécie de “apagão”, como se séculos de presença e a persistência de tantos vestígios e influências ainda tão visíveis, inclusive a nível cultural e linguístico, nunca tivessem existido. No contexto da guerra genocida contra a Palestina, assistimos, por exemplo, à identificação de portugueses com Israel através da sua redução a um país branco ocidental, fazendo parte do “eixo da civilização”, resistente face a palestinianos, árabes e muçulmanos que pertencem ao “eixo do mal”, tão longe de quem somos, esquecendo não somente a história do judaísmo, mas também da história árabe e muçulmana em Portugal.

Esta semana, o canal francês público France 2 difundiu uma reportagem que deveria ser mostrada nas escolas em Portugal, justamente sobre esta realidade, intitulada “Portugal, terra de islão”, com a intervenção essencial, entre outras, de Marc Terrisse, especialista em história árabe e muçulmana em Portugal, autor dos livros Lisbonne, dans la ville musulmane e – a sua obra mais recente, apresentada na Gulbenkian em Paris – Variations sur le Portugal, que será apresentado no Instituto Francês em Lisboa na próxima semana, a 1 de fevereiro.

Este “apagão” reforça a arabofobia e a islamofobia, em particular neste momento contra imigrantes de origem sul-asiática, que cresceram de forma preocupante em Portugal, nomeadamente em Lisboa, como, por exemplo, no bairro histórico da Mouraria. Grupos de neonazis publicitaram a intenção de organizar uma manifestação extremista para esse local e vários coletivos antirracistas já apelaram – através de uma carta aberta assinada por, até ao momento, cerca de duas mil pessoas, na quais me incluo – à sua anulação, dirigindo-se ao Presidente da República, ao Governo e a outras instâncias do Estado.

O Estado tem a obrigação de proteger os residentes no seu território, sejam estrangeiros ou nacionais. Relembro, o que deveria ser óbvio, que existem também portugueses muçulmanos e o Estado não pode deixá-los desprotegidos, é para isso que existem leis antidiscriminação e de proibição de incitamento ao ódio e à violência. O racismo, em todas as suas formas, tem incidência não somente em quem está em Portugal, mas também na vida dos portugueses no estrangeiro. Tomando emprestada e "remixando", desta vez, a expressão de Fanon: "Quando ouvires falar mal do muçulmano, presta atenção, estão a falar de ti."»

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