19.12.17

O telemóvel, um dia, morrerá. E nós?



«Estava a arrumar umas gavetas em casa e encontrei um velho relógio, abandonado há anos, escondido para ser esquecido debaixo de um monte de papéis anacrónicos. Quando deixei de usar relógio? Quando abandonei um objeto que me guiou a medida do tempo, imprescindível, durante a maior parte da minha vida adulta?...

... O telemóvel! Sim, o telemóvel no meu bolso acabou com a utilidade do relógio no meu pulso. O telemóvel, com o seu tempo sincronizado pelas redes informáticas mundiais, exato ao milésimo de segundo, sem atrasos, sem corda, sem pilha, de bateria carregada para um dia de eletricidade, em cima da minha mesa de cabeceira à noite, enquanto durmo, para me garantir, quando estou acordado, entre muitas outras coisas, horas quanticamente certas, matou, impiedoso, o relógio.

Leio no site do Dinheiro Vivo um texto típico de final de ano: "30 coisas que vão desaparecer até 2020." A lista de previsões inclui a morte por homicídio, via telemóvel, de câmaras fotográficas, discos rígidos, pen drives, mapas em papel, dispositivos GPS, CD, DVD, Blu-ray, calculadoras, despertadores, telefones fixos, cabinas telefónicas e sei lá que mais. No final aparecem, claro, os jornais e as revistas em papel, substituídos pela informação que vemos nos ecrãs de pixel em alta definição, OLED de negros profundos e cores infinitas.

A lista de previsões não difere muito, afinal, das listas semelhantes que editei nos meios de comunicação social onde trabalhei em 2010 ou em 2000, quando a revolução tecnológica do final do século XX já era uma banalidade rotineira nos países mais desenvolvidos e no dia-a-dia das pessoas e das empresas com dinheiro para pagar, consumir e produzir pelo poder da informática, da internet e das telecomunicações.



Olho para o meu relógio esquecido numa gaveta. Há uma tentativa de ressuscitar o objeto no pulso dos homens, através de um dispositivo eletrónico que comunica com o telemóvel e que faz muitas mais coisas do que, simplesmente, dar horas certas, mas as vantagens do seu uso não têm, pelo menos ainda, entusiasmado multidões.

De qualquer modo, o mundo mecânico, milimétrico, minucioso, emaranhado de metal em tic tac quase perpétuo parou de rodar: o relojoeiro que o fabricou, na Suíça, já não deve ter trabalho; a loja de ourivesaria em Lisboa que o vendeu já não os exibe na montra; a pessoa que me ofereceu há 30 anos esta prenda se quisesse, neste Natal, surpreender-me já não o escolheria; eu próprio já não olharia para ele com a alegria vaidosa desse tempo.

O mundo dos relógios mecânicos parou de rodar e, um dia, se calhar muito depressa, o mundo dos telemóveis que hoje destroem a ecologia que sustenta tantos outros objetos, tão queridos, tão indispensáveis, também acabará por deixar de fazer o movimento de rotação que o faz evoluir e o movimento de translação que o faz alimentar-se.

O telemóvel, tal com o relógio de pulso, também morrerá, remetidos para o museu, para a velharia, para a curiosidade, para a saudade, para a decoração pretensiosa, elitista ou, em inútil simbologia, na tentativa rezingona de protesto contra o avanço frio do progresso.

A morte do objeto que agora mata tantos outros objetos virá, é quase certo, da aplicação de alto nível de técnicas de inteligência artificial e de alguma forma de passarmos a comunicar a longas distâncias sem qualquer tipo de equipamento mediador.

Tal como a fábrica na Suíça ou a ourivesaria de Lisboa perderam o trabalho e o negócio dos relógios, também uma fábrica na China e uma Worten de centro comercial perderão, um dia, o trabalho e o negócio dos telemóveis.

Acham que estou a lamentar-me? Não, a humanidade não pode definir-se pela estagnação das tecnologias que cria, pelo contrário, a humanidade define-se, entre outras coisas, pela sua aparente infindável capacidade de melhorar as ferramentas que utiliza. Ainda bem que temos este poder criativo, esta capacidade de adquirir conhecimento, esta vontade de progredir.

O que não acompanha esta evolução estonteante da ciência e da tecnologia é a evolução das formas de dirigirmos a nossa vida pessoal, empresarial e coletiva: aceitamos de braços abertos todas as evoluções tecnológicas mas resistimos ferozmente a mudar qualquer rotina, por mais simples que seja. Somos revolucionários no usufruto e reacionários a governar. Desta tensão vem quase tudo o que nos leva a ter medo do futuro.

Por exemplo: temos medo de que os robôs do futuro nos roubem os postos de trabalho do presente. Tememos mesmo pela sobrevivência da espécie humana. Temos razão. Mas queremos ter robôs para fazer trabalho? Sim, queremos, pelo menos em relação às tarefas mais penosas. Como resolver este dilema? A solução é mudarmos a forma de governar a nossa vida.

O objetivo pessoal de cada um, o objetivo da gestão de cada empresa e o objetivo de cada governo têm de ser mais do que a busca da felicidade, do lucro ou do poder. A vida de cada um e de todos têm de incluir, em regime de prioridade, uma participação cívica, uma estratégia corporativa e uma política governamental de sobrevivência soberana do objeto que o robô se candidata a substituir: o ser humano.

Quando, nesta quadra, relembro o fim do relógio, antevejo o fim do telemóvel e receio o fim da humanidade estou a possibilitar, antes de mais nada, a esperança: o velho instinto de sobrevivência humana construirá, revolucionária, uma nova forma de governo e uma sociedade mais justa. Aposto. Feliz Natal.»

Pedro Tadeu
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