27.8.19

A Amazónia não é do Brasil, é do mundo. E o mundo tem de travar Bolsonaro



«A imagem de São Paulo às escuras, às 15h, parece o retrato de uma distopia. Para além dos fenómenos climatéricos que tornaram tudo o que era extraordinário banal, a escuridão explicava-se pela fuligem que vem das queimadas na Amazónia, mais de três mil de quilómetros a norte – uma Europa quase inteira. Como se a natureza quisesse explicar aos brasileiros que o que está a ser feito existe mesmo. Não é uma “fake” no WhatsApp.

Os quase oitenta mil incêndios registados na Amazónia este ano são um recorde absoluto e correspondem a um aumento de 83% em relação ao mesmo período do ano passado. Não foi Bolsonaro, feito Nero, que pegou fogo ao pulmão do mundo. Mas ninguém tem dúvidas de que há uma relação entre estes fogos e o saque para mais terra para agricultura e pastagem. Aliás, os municípios onde deflagram mais fogos são os mesmos onde a desflorestação tem sido mais intensa. A mão criminosa é evidente.

Desde que chegou ao poder, a mensagem de Bolsonaro foi muito clara: é para desflorestar a Amazónia que o Estado nada fará. E a desflorestação, que tem sido uma constante apenas drasticamente reduzida no primeiro mandato do Governo de Dilma Rousseff, aumentou 278% em relação ao ano passado. O que Bolsonaro disse foi o mesmo que disse à polícia: podem matar que não serão investigados. Que disse a quem quer expulsar os indígenas: podem atacar que ninguém os defenderá. Que disse aos homofóbicos: podem espancar que ninguém quer saber. Bolsonaro não precisa de ser criminoso, basta-lhe deixar claro que o crime não encontrará oposição do Estado. Sobretudo quando o crime vem de um dos três poderosos pilares do poder brasileiro: o boi, a bala ou a bíblia. E o “boi”, cego e ganancioso, acha que a Amazónia tem demasiado valor económico imediato para ser preservada.

Logo na formação do Governo ficou claro que a política ambiental estaria ao serviço da agropecuária. O Presidente começou por tentar fundir o Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. Perante o coro de criticas, acabou por mantê-los separados, mas esvaziando de poderes a pasta ambiental, transferindo de um ministério para outro o Serviço Florestal Brasileiro. Perante os avisos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre os altíssimos níveis de desflorestação, com imagens de satélite para o ilustrar, Bolsonaro acusou o presidente da prestigiada instituição científica de estar ao serviço das ONG e tratou informação recebida como “fake news”. No dia 21 publicou um edital para a contratação de uma empresa privada – mais obediente se quiser manter o negócio – para monitorizar o desmatamento da floresta. Com a fuligem a escurecer o céu de São Paulo e as imagens dos incêndios, tornou-se impossível desmentir os factos. Mas Bolsonaro não desarma: acusa as ONG que protegem a Amazónia de atear os fogos como ato de propaganda.

A comunidade internacional tem-se organizado e defendido o direito de ingerência quando estão em causa interesses globais. Na realidade, se formos rigorosos, a comunidade internacional tem sido organizada e defendido o direito de ingerência de alguns países sobre outros quando estão em causa interesses económicos das principais potências. Seguro é que não há nenhum recurso que tenha justificado intervenções musculadas com a relevância de 20% do ar que respiramos e com os efeitos climáticos que estes incêndios têm. Se o ar se vendesse já havia tropas de uma qualquer coligação internacional a chegar a Brasília. A Amazónia não é o pulmão do Brasil, é o pulmão do mundo à guarda do Brasil. Por isso, o mundo tem o dever de ajudar o Brasil a preservar o que tem. Com fundos, meios e saber. Era o que fazia a Alemanha e a Noruega até Bolsonaro deixar claro que não tencionava dar atenção aos avisos do INPE. Quando fecharam a torneira de milhões para o Fundo Amazónia, Bolsonaro respondeu com a sua infantilidade costumeira. À Alemanha disse: “Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel, que suspendeu 80 milhões de dólares para a Amazónia: ‘pegue essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok? Lá está precisando muito mais do que aqui”. E, confundindo a Dinamarca com a Noruega, acusou os noruegueses de caçarem baleias nas ilhas Faroé. É nas mãos deste cretino que estamos.

Não defendo, como fizeram noutras ocasiões tantos que hoje demonstram simpatia por Bolsonaro, qualquer intervenção militar. Defendo medidas diplomáticas, comerciais e políticas firmes que digam a Bolsonaro que ou age para proteger o que é de todo o planeta ou todo o planeta o deixará totalmente isolado até cair. Nisto, estou mais com Macron do que com Costa. Se Bolsonaro estiver disponível para o fazer, os países mais ricos têm o dever de contribuir para a preservação daquele bem comum. Se não, têm o dever de agir. Bolsonaro já não está “apenas” a atacar a democracia brasileira, os indígenas, o Estado de direito ou os homossexuais. Está a atacar-nos a todos.»

Daniel Oliveira
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