«O dia 11 de Março de 1975 é um marco na história da democracia portuguesa. Se o 25 de Abril representa o dia em que o anterior regime político foi deposto, o 11 de Março constitui o momento de refundação do regime económico. Este facto, por si só, justifica que se recupere esta data e o seu significado. No momento actual, há motivos redobrados para o fazer.
Nas vésperas da revolução, o regime económico em Portugal era caracterizado por dois aspectos distintivos: uma elevadíssima concentração da propriedade (3/4 da produção eram assegurados por 16,5% das empresas); e uma forte articulação entre os poderes industrial e financeiro.
Os grupos industriais CUF e Champalimaud controlavam o Banco Totta & Açores e o Banco Pinto & Sottomayor, respectivamente. Grupos com origem no sector financeiro, como o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, o Banco Português do Atlântico ou o Banco Borges & Irmão, estendiam as suas participações a vastas áreas da actividade industrial.
Este pequeno núcleo monopolista, por vezes em parceria com empresas estrangeiras, controlava o essencial da economia portuguesa. O poder que advinha das suas actividades de crédito e a proximidade ao regime político permitiam-lhes manter esse domínio. O controlo da banca proporcionava o necessário músculo financeiro. O apoio do regime assegurava os mercados de escoamento, limitava a concorrência e reprimia as reivindicações dos trabalhadores.
O regime económico da era marcelista não terminou logo em 25 de Abril de 1974. Nos meses que se seguiram manteve-se intacta a estrutura de poder industrial e financeiro, apesar da instabilidade crescente. Para essa instabilidade contribuíam dois factores decisivos. O primeiro era a grande crise económica mundial, marcada pela desaceleração do crescimento nas economias capitalistas desde finais da década de 1960, pela implosão do sistema de câmbios fixos no Verão de 1971 e pelo enorme aumento dos preços do petróleo na sequência da guerra israelo-árabe do Yom Kippur, em Outubro de 1973. O segundo factor de instabilidade, claro está, foi a dinâmica do movimento social que se seguiu à queda do regime salazarista.
O 25 de Abril aconteceu quando os primeiros sinais de crise internacional começavam a chegar a Portugal, reflectindo-se no aumento da inflação e em dificuldades financeiras em muitas empresas. Incentivados pelo desmantelamento do aparelho repressivo do fascismo e pelas expectativas acrescidas de melhoria das condições de vida, centenas de milhares de portugueses fizeram sentir a sua voz nas ruas e nas empresas, reclamando os seus direitos e questionando as orientações de gestão dos empregadores.
Como mostra o historiador Ricardo Noronha no recente livro A Banca ao Serviço do Povo (do qual roubei o título deste texto e muitos dos dados que aqui apresento), os bancos assumiram naquele contexto um papel fulcral.
Nos últimos anos do marcelismo o sector financeiro expandiu fortemente a sua actividade, participando e alimentando a euforia bolsista do início da década de 1970 e aumentando de forma acentuada a concessão de crédito. Os activos bancários cresceram de 51% para 93% do PIB entre 1960 e 1973, ficando assim os grupos monopolistas expostos a riscos acrescidos de oscilações na economia nacional e internacional, como as que se verificaram a partir do final de 1973.
Nos primeiros meses após o 25 de Abril os resultados desastrosos de muitas decisões tomadas nos anos anteriores foram criticados pelos empregados bancários. Mais polémicos ainda foram os actos de sabotagem económica e política por parte das administrações dos bancos, incluindo a concessão de empréstimos de elevado valor sem justificação ou o financiamento de partidos de extrema-direita. As denúncias dos trabalhadores da banca motivaram o desenrolar dos acontecimentos pós-11 de Março.
Na sequência da tentativa falhada de contragolpe conservador desse fim de Inverno, o Sindicato dos Empregados Bancários de Lisboa decidiu tomar o controlo dos bancos, mantendo-os encerrados por alguns dias. A 14 de Março, o Conselho da Revolução legitimava a iniciativa sindical e decidia nacionalizar quase todos os bancos portugueses. Por arrasto nacionalizava-se boa parte do sector produtivo nacional, pondo assim fim ao regime económico monopolista do Estado Novo.
As nacionalizações ficariam gravadas na pedra com a Constituição aprovada em 25 de Abril de 1976, já depois de encerrada a fase revolucionária da mudança de regime, por uma Assembleia onde PS, PSD e CDS ocupavam 85% dos lugares. Seria necessário esperar mais de uma década e por duas revisões constitucionais (em 1982 e 1989) para que o princípio da "irreversibilidade das nacionalizações" fosse eliminado da lei fundamental da República, abrindo assim caminho ao retorno da banca a mãos privadas.
Em última análise, foi a percepção do poder incomensurável do sector financeiro e dos riscos da sua má utilização por interesses particulares que levou à nacionalização da banca em 1975 e à sua inscrição como trave-mestra do regime pela generalidade dos partidos com representação parlamentar.
Entre 1975 e 1989 a banca nacionalizada foi um instrumento decisivo para ajudar os governos a lidar com a sucessão de crises que o país enfrentou. Por contraste, a reconstituição dos grupos monopolistas assentes no poder bancário, que teve lugar nos últimos 30 anos, surge hoje mais como uma fonte de problemas do que de soluções.
Não devemos pois surpreender-nos que a possibilidade da renacionalização da banca volte a ser tema de discussão. Mesmo que as posições de alguns partidos sobre o tema se tenham alterado radicalmente desde então.»
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