20.5.20

Desconfinar o juízo à direita



«Os leitores mais jovens do PÚBLICO podem não acreditar, e de facto, olhando para 2020, ninguém diria, mas houve tempos em que a direita se esforçava por ser vista como não poeirenta. Quando cheguei aos blogues, as pessoas de direita tinham a azougada ambição de mostrar ao mundo que havia uma direita cosmopolita, que lia, viajava, escrevia, ia ao teatro e cinema, fugia a sete pés do salazarismo – juro!

A direita – entenda-se para estas linhas a parte mais à direita do PSD e tudo o resto até ao Chega –, por estes dias em que PS e Centeno lhe roubaram o único valor que permanecia (défice orçamental controlado), já não é a favor de nada. Só é contra. Furiosamente contra. Tudo o que tenha um leve aroma de posterior a 1959 é encarado com histeria e corridas para pôr os comprimidos da tensão arterial debaixo da língua.

A direita é contra as realidades perigosas que incomodam a vida à gente de manhã presa no trânsito ou nos transportes públicos, e que atrasam consultas no SNS: o marxismo cultural, o politicamente correto e a ideologia de género. São, como se sabe, as grandes causas da baixa produtividade nacional e dos baixos salários. Atormentam diariamente a vida das populações. Por isso a direita escolheu-os para as suas grandes causas. Fez muito bem. Temos de ver que são realidades abrangentes. Propor qualquer política que contrarie desigualdades e injustiças é politicamente correto. Promover a participação política de grupos tradicionalmente excluídos é politicamente correto. Já a ideologia de género, como se sabe, pretende transformar qualquer criança em gay e/ou transexual.

Falei no trânsito? A direita é contra o consenso científico das alterações climáticas. E contra facilitar a vida às populações e a mobilidade sustentável. Uma das medidas mais populares do Governo anterior – o embaratecimento dos passes sociais – desagradou à direita. (A Câmara de Cascais, do PSD, tem transportes intra concelhios gratuitos desde o início do ano. Grandes marxistas culturais.) O corajoso apoio de Assunção Cristas à primeira greve climática em frente à Assembleia da República (fotografou-se com o filho) foi vista como uma deriva esquerdista e prova (juntamente com a defesa das quotas) da desadequação para líder de direita.

A direita é contra o PREC. Já terminou há mais de quarenta anos, nem existe “geringonça”, mas os lados direitos imaginam-se resistindo de armas na mão a uma invasão comunista inexistente. Se à esquerda houve quem sempre fizesse render o peixe do Estado Novo, agora a direita que se preza não fica mais de uma semana sem referir o perigo do PREC. De resto, a direita vive em permanente estado de calamidade: é que estamos todos prestes, a minutos, de sermos engolidos pelo socialismo. No momento em que o debate internacional (presente até nos certamente marxistas The Economist ou Financial Times) anda à roda do capitalismo demasiado desregulado, gerando excessivas desigualdades, sobrepondo-se aos direitos humanos – há almas que vêem perigos no socialismo engavetado.

A minha preferida: a direita é contra o feminismo, invenção diabólica. Oh, o esforço que opinadores da direita fazem para mostrar o feminismo como o maior mal do mundo e promover o papel tradicional da mulher. Ensaios, crónicas, linhas compulsivas já foram escritas pelos ideólogos e opinadores à direita propondo dar cabo das perspetivas profissionais das mulheres para as obrigar a ir para casa produzir filhos (não, não foi Margaret Atwood em The Handmaid’s Tale), da liberdade ameaçada de uma mulher poder escolher ficar em casa tomando conta dos filhos (todos os dias existem manifestações pelas ruas contra essas escolhas – nas cabeças delirantes), de, claro, feminismo como expoente de marxismo cultural. Não são maluquinhos das redes sociais, são políticos e pessoas com acesso à comunicação social. De resto, temos três partidos claramente hostis a políticas que aumentem a representação feminina nos lugares de poder e decisão e a qualquer narrativa feminista: CDS, IL e Chega.

A direita é contra o ensino de História. Não só o episódio de Rui Tavares sobre a Exposição do Mundo Português no #EstudoEmCasa, mas também a nova disciplina de História, Culturas e Democracias para o 12.º ano. Li que era ideologia, lavagem cerebral e antipatriótica. Apesar de a disciplina conter no programa o PREC (esse mesmo), a Revolução Cultural Chinesa e os anos de Pol Pot como momentos traumáticos, ensinar História é definitivamente marxismo cultural.

Mas sou injusta. Há realidades de que a direita gosta. Gosta de negar que a extrema direita é extrema direita. O Vox (que tem elementos que protestaram pelas sentenças aos violadores do grupo La Manada vendo-as como torpedo à heterossexualidade e diktat das feministas) não é de extrema direita – asseverou Nuno Melo enquanto candidato ao Parlamento Europeu. Também há quem lave com detergente potente a imagem de André Ventura. Um candidato do PSD, cheio de vontade de perder votos, nas últimas primárias do partido admitia coligar-se com o dito. Nem refiro, por economia, a vergonha alheia que me toma quando vejo defesas, umas explícitas outras implícitas, de Trump e Bolsonaro.

Poderia continuar horas. A direita não adota estas guerras culturais sem objetivo. Está convencida de que por aqui vêm votos. Enquanto isso, a população, apesar de se entreter nas redes sociais a despejar ódio na tribo oposta, ocupa-se sobretudo com os ordenados ao fim do mês, o acesso à saúde e à educação, a mobilidade e os transportes, que planeta deixamos para os filhos, e gosta de concertos, festivais e até de teatro. Não quer que as filhas tenham as mesmas escassas oportunidades que as avós em 1950. Os mais novos têm como valores quase sagrados a preservação ambiental e questões de inclusão. As empresas desejam uma procura interna forte e estabilidade. Diria eu que os votos vão para quem dê soluções aos problemas em vez de se ocupar com diletantismos.

A estratégia de radicalizar a direita é tão bem-sucedida que anda, toda junta, por 35% das intenções de voto nas sondagens. A única pesquisa recente onde intenções de voto lhe deram mais, na globalidade, foi pelo crescimento no PSD – e Rui Rio sai destes esquemas todos. Donde, verifica-se, é uma estratégia ganhadora. A minha aposta é que a direita vá insistir nela.»

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