22.8.20

Bicharada Pré-Covid (3)



Coala no Featherdale Wildlife Park, Doonside, Sydney, Austrália, 2017.

Este parque alberga animais selvagens da fauna australiana, pássaros, répteis e marsupiais – davam para uma série inteira desta bicharada...



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Turismo?


«Quando o primeiro-ministro vem com a treta de me pôr, a mim e aos meus colegas, a trabalhar em lares de terceira idade e instituições de solidariedade social, fico convencida que ele não percebeu o nosso problema principal, logo a seguir à perda de rendimentos ou de emprego: tal como um médico, um arquitecto, um engenheiro ou um padeiro, muitos de nós trabalhamos em turismo por opção, não porque não há mais nada, ou não somos capazes de fazer mais nada. Isto não subestima o trabalho de quem trabalha num lar. Mas também não subestima o nosso. Nem o direito à escolha de um ou outro.»

... escreve uma profissional de Turismo há mais de 20 anos.
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Fim do Covid? É mais ou menos isto


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A ouvir , a ouvir...


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Radical contra a barbárie



«Najma al-Khatib, uma professora síria de 50 anos, conta ao “The New York Times” como oficiais gregos mascarados a levaram, com mais 21 pessoas (dois bebés), de um centro de detenção em Rodes para um bote salva-vidas sem leme e sem motor que foi abandonado em alto-mar. Segundo o jornal, as autoridades gregas expulsaram secretamente, em 31 ações realizadas desde março, 1072 requerentes de asilo. Também retiraram combustível a barcos de refugia¬dos e rebocaram-nos para as águas turcas. E abandonaram refugiados numa ilha desabitada. E expulsaram migrantes legais, enfiando-os num barco no rio Evros. Não é na Hungria ou na Polónia. É na Grécia. A chegada dos conservadores ao poder, a pandemia e o abandono dos gregos à sua sorte na tarefa de gerir a fronteira da União explicam a complacência nacional com a barbárie. Mas nada neste comportamento da Grécia a distingue de uma odiosa tirania. A diferença é que reserva o crime para quem não seja grego.

A proximidade faz-me olhar mais para as vítimas de Reguengos do que para as do Mediterrâneo. Mas sei que aquelas vidas valem o mesmo e o meu dever para com elas é o mesmo. É esta incapacidade de distinguir “nós” e “eles” que, dizem-me, me coloca num extremo. É a radicalidade com que dou igual valor à vida de um sírio e de um grego, de um português e de um líbio, de um negro e de um polícia, que me aproxima dos que acreditam no oposto: que tratar da vida dos “nossos” vale a dor necessária dos outros. No meio de nós ficam os moderados. Os que não marchariam com abolicionistas ou sufragistas radicais, que não pegariam em armas no Gueto de Varsóvia, que toleraram até há pouco tempo a discriminação legal dos homossexuais. Não teriam tomado nem o Carmo nem a Bastilha. E perante um bote à deriva com 22 seres humanos, dois bebés, carregado pela civilizadíssima Europa para alto-mar, pedem que não acicatemos a extrema-direita que já determina o que somos pelo medo que cresça.

Não me determina a mim. Ainda tenho indignação perante um barco à deriva com 22 pessoas, dois bebés. Sou do extremo que dizem que toca no outro. Porque sei que o silêncio “moderado” perante o discurso bárbaro que se torna hegemónico na Europa é o problema. Sou antirracista radical. Porque não percebo que moderação pode haver perante a violência quotidiana do racismo. Porque não estou num ponto equidistante entre a vítima e o agressor. Porque o meu respeito pelas forças de segurança, ou por qualquer outro poder, não é independente do que façam. Porque sei que o que vemos na Grécia ainda não é o fim da linha. Nem o discurso oportunista de Ventura (que esta semana veio em defesa da corrupção de Steve Bannon, chamando-lhe “uma questão qualquer de angariação de fundos” e avisando a Justiça portuguesa que nunca se atreva a investigar o Chega), o deputado que sem revolta geral propôs o confinamento especial para uma etnia. Não foi por causa dos que resistiram ao antissemitismo generalizado na Europa que ele se transformou numa indústria de ódio. Foi lentamente, tratando seres humanos como mercadoria indesejada. Por culpa da moderação conivente dos que acham que todos os extremos se tocam.»

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21.8.20

Bicharada Pré-Covid (2)



Cavalo da raça Turken Akhalteke. Asghabat, Turquemenistão, 2016.

Estes cavalos são extremamente ágeis e muito resistentes, podem viajar 150 km por dia com pouca comida ou água. São uma espécie de símbolo do país e foram muito elogiados desde os tempos de Alexandre o Grande, imperadores romanos e Genghis Khan. Respeitadíssimos, são considerados «sagrados», acarinhados quando envelhecem e são já impróprios para saltos e corridas e têm um cemitério dedicado.


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O Novo Normal



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O fim da ingenuidade


«Pensar, num mundo hiperconectado, que este ódio não se propagaria a Portugal, é ser-se ingénuo ou optar por deliberadamente fazer vista grossa. Em entrevista recente ao “Público”, Álvaro Vasconcelos, do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, considera que se ultrapassou uma linha vermelha e que o “discurso racista do Chega na Assembleia da República criou as condições políticas” para a escalada que estamos a assistir. “O discurso racista mata, é violência e foi-se banalizando em Portugal, foi assumido pelo Chega, teve a cumplicidade de muita gente da sociedade portuguesa, sem que as instituições da República fizessem um repúdio frontal”.»

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Do turismo para o trabalho social?



Afinal, António Costa já tinha dado o exemplo: houve quem passasse de secretária de Estado do Turismo para ministra da Segurança Social.
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Quando nos descolonizamos?



«O 25 de abril de 1974 não pôs fim apenas a uma ditadura de 48 anos. Pôs fim a uma guerra colonial - que esteve mesmo na origem da revolta militar - e, num plano mais vasto, suspendeu séculos de identidade nacional e sistema político-económico assentes nos chamados descobrimentos, na expansão e no colonialismo.

A democracia que temos vindo a construir no último quase meio século não soube verdadeiramente lidar com esta mudança. Pode mesmo dizer-se que falhou nesse plano. Soubemos implementar as liberdades políticas e o estado de direito; soubemos, graças às lutas sindicais e das classes trabalhadoras, enfrentar as desigualdades de classe - apesar de permanecerem, transformaram-se, são reconhecidas e não são vistas como estatutos perenes como castas; soubemos, graças às lutas feministas, enfrentar o sexismo e a misoginia, promovendo a crescente igualdade de género); soubemos, inclusive, enfrentar as desigualdades com base na orientação sexual e na identidade de género. Mas não soubemos enfrentar as desigualdades assentes na etnicidade e na “raça”. Ou seja, não soubemos enfrentar o racismo.

Onde começa essa incapacidade? Desde logo na forma como confundimos a descolonização política com a descolonização das mentalidades. O passado colonial foi varrido para debaixo do tapete e o país foi reconfigurado como europeu, como tendo regressado ao seu território original. Mas a estória que contamos sobre nós próprios como história assenta ainda nos aspetos elogiados da expansão do estado português e do colonialismo como elementos centrais da identidade. Em democracia apenas passámos uma camada de verniz sobre velhas estórias. Acentuámos o “universalismo”, o “humanismo” e o “encontro de culturas”, inventámos a noção de lusofonia e a CPLP (ambas produtos portugueses e para consumo identitário português) e, no plano interno, investimos nos conceitos de “integração” e “interculturalidade”. Não revisitámos a história, não fizemos um processo de verdade e reconciliação, e não incorporámos negros e afrodescendentes (e ciganos) como verdadeiros cidadãos.

O problema é que essas camadas de verniz foram e são demasiado consentâneas com a narrativa herdade da ditadura. Normalmente resumimo-la na expressão “luso-tropicalismo”, que comporta a ideia de um colonialismo mais brando do que os outros e duma consequente ausência de racismo em Portugal, suposições ampla e definitivamente refutadas pela investigação histórica e antropológica contemporânea.

Nada mudou verdadeiramente, dos livros escolares à conversa de café. Nem sequer o tremendo esforço de construção da democracia e duma sociedade mais justa veio substituir a estória que contamos sobre nós próprios. Não parece ser disto, da liberdade e da democracia, que a maioria dos portugueses se orgulha, mas sim, e ainda, dos “descobrimentos”, da expansão e mesmo do colonialismo e seus avatares contemporâneos. Há quase 50 anos que o Estado português, e mesmo a sociedade, recusa a ideia de uma narrativa mais complexa, que inclua também o comércio de pessoas escravizadas, as campanhas de “pacificação”, o trabalho forçado imposto aos indígenas das colónias, e tantas violências físicas e simbólicas perpetradas nas colónias. Isto reforça a noção dos americanos originais e dos africanos como objetos da história e da nossa ação, e não como sujeitos.



20.8.20

Bicharada Pré-Covid (1)



Mãe é mãe..., Kuala Lumpur, Malásia, 2012.
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Já marchavam...


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No país do mal menor



Quando se critica Marcelo, mesmo a brincar, aparece sempre alguém que comenta «Antes ele do que Cavaco». Eu também diria «Antes Cavaco do que Américo Tomás». Já quanto a «Antes Tomás do que Afonso Henriques», não sei: o Américo também batia na mãe?
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A insensatez



«Compreendo e concordo quando se diz que a melhor forma de combater a extrema-direita é dar condições de vida às pessoas. Mas já esta frase em si traz qualquer coisa que incomoda. Dar, quem dá? Uns dão, e outros são as pessoas?

Democracia plena seria uma em que todos fossemos as pessoas, e que essas frases que separam uns dos outros nunca viessem sequer à nossa cabeça. As coisas funcionam quando somos: nós. Temos um excelente exemplo disso que aconteceu agora mesmo. O famoso achatar da curva só era possível se nós fossemos um grupo, fomos. Mas estávamos todos com medo do que pudesse vir a acontecer a cada um, às nossas famílias, amigos. Por isso pergunto-me se esse “nós” conta. Num mundo ideal todos devíamos ter condições, conhecimentos, para poder governar, para participar da feitura das leis. Trabalharmos para a nossa comunidade como nas corridas de estafeta, em que um passa o testemunho ao outro. Não vai acontecer.

E haverá sempre gente de extrema-direita, haverá sempre o ódio, haverá sempre quem tenha um poster do Hitler em casa. Haverá sempre nostálgicos da ditadura. Haverá sempre nostálgicos da escravatura. O que não se pode é dar espaço a esse gente. O que não se pode é dar-lhes tempo para se organizarem, dar-lhes a oportunidade de se apresentarem com se não fossem estes que mencionei atrás. A nossa sociedade terá sempre imperfeições. Alguns de nós teremos sempre medo de alguma coisa que possa aí vir, e que venha acabar com o nosso bem estar, que venha ocupar o nosso lugar. A extrema-direita serve-se do medo para o transformar em ódio. Quando não temos um inimigo entre nós, haverá sempre quem grite que ele vem aí. Em Portugal essas pessoas ganharam força num momento em que o país estava a melhorar, em que a esperança estava a voltar. Porque são movimentos internacionais, porque o Trump abriu portas para muitas coisas impossíveis de acreditar possíveis nesta época. Porque o partido do Trump nunca quis tirar-lhe o espaço.

Não se pode dar espaço a esta gente, e em Portugal estamos a escancarar-lhes a porta.

Alguns exemplos:

Em 2011 fiz uma pesquisa grande sobre a PSP. Assisti aos primeiros testes de recrutamento para a escola da polícia, assisti a aulas, falei com estudantes da escola de polícia, falei com comandantes de várias esquadras, visitei clubes de polícias, quartos onde dormiam. Fui a manifestações da PSP em frente ao Parlamento. No meu entender esta polícia não é a mesma que conheci em 2011, passaram-se nove anos. Nove anos dá tempo para infiltrar gente com um propósito específico dentro dessa força. Quero acreditar que são ainda uma minoria, mas podem vir a ser mais, podem ter cada vez mais atitudes contra negros, contra ciganos, contra migrantes. Acontecendo isso, haverá uma reação crescente, natural e justa, contra a polícia. A extrema-direita, já com lugar institucional, vai “defender a ordem”, vai mentir, vai ganhar mais seguidores.

Não vejo tudo o que dá na televisão, só posso dar exemplos do que vi.

Conversa entre Marçal Grilo, e Nobre Guedes. Antigos ministros, um pelo PS e outro pelo CDS, em comentários à semana dos mascarados em frente à sede do SOS Racismo, e das ameaças às deputadas, e associações anti-racistas.

Marçal Grilo:

1. A extrema-direita e a extrema-esquerda precisam deste tipo de tema. Precisam disto como do pão para a boca. E depois há uns tontos que ainda não perceberam que isto é um tema dos dois, da extrema-esquerda, e da extrema-direita.

2. A extrema-direita é sempre mais agressiva do que a extrema esquerda. Penso que há aqui uma certa articulação, sobretudo com alguns movimentos alemães neo-nazis porque os alemães sabem muito disto. Têm um grande background desta coisa, sabem muito bem como é que isto se faz porque sabem muito bem como é que isto se fez.

Nobre Guedes:

1. O que está por trás disto é a dificuldade que a esquerda está a ter em lidar com o Chega.

2. O Rui Rio não tem que se meter nisto, mas já o CDS, a Iniciativa Liberal, o Chega, e quem sabe o Aliança, todos eles deviam fazer um esforço de federação para se apresentarem às autárquicas.

3. O espaço da direita tem que ser reorganizado. Estes 3 ou 4% não servem para rigorosamente nada.

Segundo Marçal Grilo há, em Portugal, grupos ligados aos neo-nazis alemães, mas nós não temos nada que ver com isso porque isso é uma coisa lá entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. É isso? E já agora a pergunta que a jornalista não fez: quem é essa extrema-esquerda? São as deputadas ameaçadas?

E Guedes diz que o que está por trás disto é a dificuldade que a esquerda está a ter em lidar com o Chega. Disto? Das ameaças?

Mas logo o seu raciocínio se torna mais explícito: O CDS está a desaparecer, e se não se juntar ao Chega, desaparece. O que o CDS e o PSD, ou pelo menos Rio estão a fazer, é pior do que os republicanos que não retiraram o apoio ao Trump, estão a dar um apoio ao Chega que o Chega nem pediu. E quanto mais apoio lhes derem, mais legitimados ficam, e menos precisarão desse apoio.

Mais um exemplo:

Poucos dias antes destes acontecimentos, ouvimos Ricciardi referindo-se a Mariana Mortágua, membro de um órgão de soberania, “essa figura o melhor que faria era reduzir-se ao silêncio”, “essa senhora devia ter vergonha, e devia era desaparecer de vez”. Consequências: zero.

Não estou a dizer que Ricciardi esteve por trás das ameaças subsequentes, mas ele para além de banqueiro é um homem do futebol, e sabe-se que há claques de futebol ligadas a grupos de extrema-direita. E por isso, quem me garante que Mortágua não está na lista das ameaçadas por causa do que ele disse? Porque é que não está Catarina Martins, por exemplo? As deputadas Beatriz Gomes Dias, e Joacine Katar Moreira são claramente ameaçadas por esses racistas pela sua cor de pele.

Quando o Presidente da República apela à calma e à sensatez, eu concordo. Sensatez é o que se pede, mas não é com tanto silêncio e passadeiras vermelhas que se é sensato.»

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19.8.20

A sério, senhor primeiro ministro?



Mesmo sem má vontade nem ironia, duvido que este desejo do PM tenha muitas hipóteses de sucesso, a não ser numa percentagem relativamente baixa da população em causa. Os empregados de mesa dos restaurantes, os motoristas dos tuc tucs ou os recepcionistas dos hotéis vão transformar-se em cuidadores nos lares? A sério? Porque já «trabalham com pessoas», como diz António Costa?

"Muitos dos milhares de pessoas que neste momento estão a perder o emprego no setor do turismo são pessoas que já têm uma formação de base, são pessoas que já têm uma experiência de cuidado pessoal, que são um recurso fundamental e com formação para poderem ser facilmente reconvertidas para continuarem a trabalhar com pessoas, agora nas instituições em que estão associadas nas IPSS, nas mutualidades, nas misericórdias ou nas cooperativas."
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Leonard Cohen canta Lorca


Federico García Lorca foi fuzilado em Agosto de 1936, entre os dias 17 e 19, pelo seu alinhamento político com os Republicanos e por ser declaradamente homossexual.


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Trump: oxalá...



(N.B. - Dizem-me que a capa é uma montagem, mas fica aqui com essa referência porque vale por si.)
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A pressa facebookiana é má conselheira



«Há um par de dias, Carlos César usou da sua exuberante forma de cordialidade para exigir no Facebook aos partidos de esquerda que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”, mostrando se “são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente mas claro, para a legislatura...ou se preferem assobiar para o ar à espera dos percalços”. A meio de agosto e antes de começarem as negociações detalhadas sobre os temas do Orçamento, este “de uma vez por todas e sem mais demoras” soa ao que é. O problema é que para fazer chantagem se exige algum saber e basto sentido de oportunidade. Ambos escasseiam neste “de uma vez por todas”.

Há um ano atrás, em junho e era véspera de eleições, o mesmo César explicava que o PS não devia continuar a geringonça e devia romper com o Bloco porque, se o PS fosse “sempre atrás do BE”, o país voltaria “ao tempo da bancarrota”. Num discurso aos seus deputados, explicou que era preciso evitar as “aventuras orçamentais que levariam ao colapso e à desconfiança internacional” e que, para isso, a única solução era uma maioria absoluta contra os “bloqueios” e “constantes dificuldades” da geringonça. O primeiro-ministro, em entrevista ao Expresso, explicou o mesmo apelo aos eleitores: ou maioria absoluta ou caos. Parece que, um ano depois, é ao contrário, haverá bancarrota se não houver acordo “de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”.

Há um ano, havia em todo o caso uma alternativa na manga, que era o “acordo de cavalheiros” com o PCP. O PCP tem “uma estabilidade na sua ação política que lhe dá coerência, sustentabilidade, previsibilidade, e, portanto, é muito fácil trabalhar com ele”, dizia Costa. E era uma certeza pessoal, a mais profunda das emoções: “quando ele (Jerónimo) diz que entre gente de bem basta um aperto de mão ou mesmo olharmo-nos olhos nos olhos”, não é preciso um acordo escrito, explicava o primeiro-ministro. Com a sua “experiência de trabalho com Jerónimo de Sousa", Costa afirmava não ter a “a menor das dúvidas”, assunto arrumado. Olhando-se nos olhos, com um aperto de mão, “é fácil trabalhar” com o PCP, a coisa estava garantida, não havia “a menor das dúvidas”. Parece que, um ano depois, é também ao contrário, já é conveniente o acordo escrito que era então rejeitado.

O certo é que falhou tudo. O PCP foi prejudicado por estas insinuações, o PS não teve maioria absoluta e foi necessário definir as novas condições de governação. Mas, como antecipado por tais declarações belicistas, a partir das eleições o governo recusou qualquer quadro de cooperação para a legislatura. A geringonça foi enterrada com a convicção de que o PS estava mais forte e ditava a lei, quando, pelo contrário, ao perder a oportunidade da maioria absoluta e ao destruir a geringonça, ficou mais frágil, como hoje se verifica nestas aflições de agosto.

Curiosamente, César agora culpa o PCP, com o qual então não havia “a menor das dúvidas”, pela rejeição da geringonça e pela instabilidade política assim criada: “A recusa do PCP, logo após as últimas eleições, em subscrever um acordo para esta Legislatura, tal como havia sido conseguido na anterior, prejudicou a coerência e a utilidade de um acordo com um único parceiro - o BE -, do qual resultaria, certamente, uma tendência de exclusão do PCP e em pouco reduziria a ameaça da instabilidade”. É uma acusação injusta e até extravagante, dado que essa recusa tinha sido claramente anunciada por Jerónimo de Sousa durante a campanha e foi Costa quem inventou um pretenso idílio em que bastaria “olharem-se nos olhos” e “um aperto de mão” para tudo ficar resolvido. Era falso, como se verificou num ápice.

Assim, a realidade é teimosa: há um ano, o PS recusou começar uma negociação que poderia criar uma maioria parlamentar, pois não aceitava um acordo, afirmando que este levaria à “bancarrota” e, além disso, não admitia que estivessem na mesa de discussão as reformas laborais da troika, apesar de prometer ao país um “olhar nos olhos” com o PCP, numa encenação unilateral. Um ano depois, César exige ao PCP (com quem “é fácil trabalhar” mas não quer) e ao Bloco (que propôs um acordo mas que foi recusado) que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”. A palavra “calculismos” tem aqui um sabor amargo. O problema é que o governo ainda não fez as suas escolhas para apresentar as suas propostas orçamentais; que o plano Costa e Silva ainda não foi concretizado em projetos de médio e longo prazo; e que as discussões detalhadas entre o governo e os partidos de esquerda ainda não avançaram, estando agendadas para as próximas semanas. Como podem então concluir-se antes de começarem? A intimação facebookiana de César só tem por isso uma leitura e não lhe é lisonjeira.

Era preferível mais prudência e menos calculismo. Sair da gritaria no Facebook e sentar-se em reuniões de trabalho. Evitar truques de retórica e estudar propostas. Deixar as rasteiras e discutir questões difíceis. Evitar atalhos. Aliás, poderia ser um sinal interessante que o governo aceitasse agora discutir normas da lei laboral no combate à precariedade e desemprego, se não se tratar de um engodo que vá desaguar no direito de veto das associações patronais na concertação social, mas é preocupante que ao mesmo tempo inicie um recuo sobre o salário mínimo nacional. No meio destes movimentos paradoxais, a ordem dada pelo presidente do PS é o mais desastrado das percalços.»

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18.8.20

Grandes árvores deste mundo (1-8)


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Que mundo é este em que vivemos (e morremos)?



«As autoridades gregas terão feito pelo menos 31 expulsões semelhantes desde março - no total 1.072 requerentes de asilo foram abandonados em mar alto.
Os refugiados abandonados são maioritariamente sírios que fogem da guerra civil, mas segundo os registos da organização internacional Human Rights Watch há também imigrantes que residem e trabalham legalmente em território grego.»
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Carta aberta dos escritores de língua portuguesa contra o racismo, a xenofobia e o populismo e em defesa de uma cultura e de uma sociedade livres, plurais e inclusivas



«Nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, estamos, por ofício, cientes do poder da palavra. E do poder da sua omissão também. Conhecemos os custos de dar palco ao que, em circunstâncias normais, não mereceria uma nota de rodapé. Pondo em cena aquilo que não é de cena – aquilo que é, e não só etimologicamente, obsceno.

Preferimos correr esse risco face às circunstâncias vividas em Portugal, que consideramos graves e inquietantes, nos domínios do racismo, do populismo, da xenofobia, da homofobia, das emoções induzidas, da confusão destas com ideias e, em geral, de tudo aquilo que de mais repugnante pode emergir de uma sociedade em crise e em estado de medo.

Temos de reagir antes que seja tarde. E usar as palavras contra o insidioso ataque à democracia, ao multiculturalismo, à justiça social, à tolerância, à inclusão, à igualdade entre géneros, à liberdade de expressão e ao debate aberto.

Exigimos compromissos políticos que detenham a escalada do populismo, da violência, da xenofobia – de todos esses reflexos primitivos, retrógrados, obscurantistas, destrutivos e abjectos. Tais são as nossas grandes riquezas: a diversidade e a tolerância. Como o expressa a língua portuguesa, feita de aglutinação, inclusão e aceitação da diferença.

Quem gosta de Portugal jamais diz «Vão!», antes diz «Venham!».

É preciso tomar consciência de que as ameaças que ora rastejam propiciam uma quebra irreparável dos valores humanistas, da solidariedade e do mútuo apoio – valores laborais e de igualdade de direitos constitucionais à saúde, à educação, ao emprego, à justiça, à cultura.

Cultura e literatura não florescem nestes tempos sufocantes, em que a terrível crise humanitária dos refugiados, nos deploráveis campos às portas da Europa, e a ameaça ecológica e ambiental, à escala planetária, são banalizadas nos noticiários. E ao que vem de trás ainda se junta o que se seguirá à pandemia da covid-19: o alastramento do desemprego e da pobreza, pasto fértil para demagogias, teses anti-imigração, racismos e extremas-direitas.

Não podemos olhar para o lado nem continuar calados, sob pena de emudecermos. Por tudo isto, nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, assumimos o compromisso de jamais participarmos em eventos, conferências e/ou festivais conotados – seja de que maneira for – com ideias que colidam com os princípios da tolerância e da dignidade humana.

A todos os cidadãos portugueses, à sociedade civil, aos professores das escolas e das universidades, apelamos a que se distanciem de projectos e movimentos antidemocráticos e ajudem na consciencialização das novas gerações para a urgência dos valores humanistas e para os riscos das extremas-direitas; aos órgãos de justiça, que investiguem, processem e condenem os interesses económico-financeiros que se servem dos novos populismos para, a coberto da raiva e da intolerância, acentuarem as desigualdades de que sempre se sustentaram; às autoridades policiais e aos seus agentes, que se abstenham de condescender com movimentos e acções promotores da exclusão, da discriminação e da violência; à comunicação social, que assuma com veemência o seu papel de contraditório e de defesa da verdade; aos partidos políticos, que sejam capazes de recuperar os princípios esquecidos no decurso do jogo partidário de vocação eleitoral; ao Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo, que exerçam um escrutínio rigoroso da constitucionalidade e assegurem que o fascismo não passará.

Na certeza de que, como sempre nos mostrou a História, quem adormece em democracia acorda em ditadura,

os escritores de língua portuguesa:

Adélia Carvalho / Adriana Lisboa / Afonso Borges / Afonso Cruz / Alexandra Lucas Coelho / Alexandre Andrade / Alice Vieira / Almeida Faria / Álvaro Laborinho Lúcio / Álvaro Magalhães / Amosse Mucavele / Ana Bárbara Pedrosa / Ana Cristina Silva / Ana Luísa Amaral / Ana Margarida de Carvalho / Ana Marques / Ana Pessoa / Ana Saldanha / Ana Saragoça / André de Leones / Andréa del Fuego / Andrea Zamorano / Andreia Azevedo Moreira / António Borges Coelho / António Cabrita / António Ladeira / António Mota / António Tavares / Bernardo Carvalho / Carlos Campaniço / Carlos Nogueira / Carlos Tê / Carlos Vale Ferraz / Catarina Santiago Costa / Catarina Sobral / Chico Buarque / Chissana M. Magalhães / Cláudia Lucas Chéu / Conceição Lima / Cristina Drios / David Machado / Diniz Borges / Domingos Lobo / Eileen A. Barbosa / Elsa Caetano / Eric Nepomuceno / Evandro Affonso Ferreira / Fabrício Corsaletti / Filinto Elísio / Filipa Martins / Francisco José Viegas / Francisco Resende / Fundação José Saramago / Gabriela Silva / Gonçalo Cadilhe / Gregório Duvivier / Helder Macedo / Helena Vasconcelos / Hélia Correia / Henrique Manuel Bento Fialho / Hugo Gonçalves / Inês Pedrosa / Isabel Minhós Martins / Isabel Olivença / Isabel Rio Novo / Isabel Zambujal / Isabela Figueiredo / Itamar Vieira Júnior / Jacinto Lucas Pires / Jaime Rocha / Jamil Chade / Joana Bértholo / Joana M. Lopes / João Cezar de Castro Rocha / João de Melo / João Paulo Cotrim / João Paulo Cuenca / João Pedro Porto / João Pinto Coelho / João Ricardo Pedro / João Tordo / Joel Neto / Jorge Serafim / José Anjos / José Carlos Vasconcelos / José Eduardo Agualusa / José Fanha / José G. Neres / José Jorge Letria (escritor e presidente da SPA) / José Luís Peixoto / José Manuel Mendes / José Mário Silva / José Pinto / Juca Kfouri / Julián Fuks / Júlio Machado Vaz / Leonor Sampaio Silva / Lídia Jorge / Lúcia Bettencourt / Lucílio Manjate / Lucrecia Zappi / Luís Almeida Martins / Luís Carlos Patraquim / Luís Carmelo / Luís Corredoura / Luís Fernando Veríssimo / Luís Quintais / Luís Rainha / Luísa Costa Gomes / Luísa Ducla Soares / Luíz Filipe Botelho / Luiz Ruffato / Madalena B. Neves / Madalena San-Bento / Manuel Alberto Valente / Manuel Jorge Marmelo / Manuela Costa Ribeiro / Márcia Balsas / Margarida Fonseca Santos / Margarida Vale de Gato / Maria do Rosário Pedreira / Maria Manuel Viana / Maria Valéria Rezende / Mário Cláudio / Mário de Carvalho / Mário Loff / Marta Bernardes / Mary del Priore / Mia Couto / Miguel Real / Miguel-Manso / Milton Hatoum / Mónia Camacho / Nara Vidal / Nazir Ahmed Can / Nélida Piñon / Nilma Lacerda / Noemi Jaffe / Nuno Camarneiro / Olga Santos / Olinda Beja / Ondjaki / Onésimo Teotónio Almeida / Patrícia Melo / Patrícia Portela / Patrícia Reis / Paula de Sousa Lima / Paulo Kellerman / Paulo M. Morais / Paulo Moura / Paulo Scott / Pedro Loureiro / Pedro Meira Monteiro / Pedro Pereira Lopes / Pedro Vieira / Pepetela / Possidónio Cachapa / Raquel Varela / Renato Filipe Cardoso / Ricardo Fonseca Mota / Ricardo Ramos Filho / Richard Zimler / Rita Ferro / Rita Taborda Duarte / Rodrigo Guedes de Carvalho / Rosa Freire D'Aguiar / Rui Cardoso Martins / Rui de Almeida Paiva / Rui Lage / Rui Manuel Amaral / Rui Zink / Ruth Manus / Sandro William Junqueira / Sérgio Godinho / Sérgio Nazar David / Sidney Rocha / Susana Moreira Marques / Tânia Ganho / Tatiana Salem Levy / Teolinda Gersão / Teresa Rita Lopes/ Tiago Rodrigues / Tiago Salazar / Tom Farias / Valter Hugo Mãe.

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Activismo pela Humanidade



«A estranheza reside no facto de ainda ser necessário. O activismo consiste na defesa de uma causa, dum ideal, é uma luta que se entende precisar de ser feita. É uma voz, é um grito, um acordar, uma chamada para acção, com o objectivo de mudar mentalidades e em última análise penetrar nos processos de decisão política.

O problema reside no facto de, a política ser fechada no essencial, a interesses puramente nacionais. E logo temos um histórico, um presente e um convite para um futuro em que a nossa empatia para com outros seres humanos, esbarra nas fronteiras do nosso país. Vejamos, por exemplo, a nossa análise às consequências da pandemia: Se em Portugal os números estiverem a descer e em Espanha a aumentar para nós é uma vitória, como se esta linha que nos divide, dividisse também as vidas que importam, e as que importam menos. E obviamente que nós sentimos empatia pelos espanhóis, pois cruzam-se connosco com frequência, compreendemos o que dizem, partilhamos a religião maioritária e culturalmente temos muito em comum. Sofremos quase como se fosse na nossa pele os ataques na estação de comboio de Atocha em Madrid em 2004. Mas se formos um pouco mais longe o nosso coração deixa de bater. Quando as nossas atenções entram em mundos onde a cor de pele é substancialmente diferente, quando rezam a um deus estranho ou falam uma língua muito “esquisita”, nós deixamos de sentir. Deixamos de ver a humanidade que nos une. Desvanece o nosso sentido de humanidade comum.

O Iémen é a maior crise humanitária dos últimos cem anos, cerca de 100.000 crianças já morreram à fome, e cerca de cinco milhões de crianças estão em risco de se juntar a essa estatística. Na guerra do Congo já morreram cerca de seis milhões de pessoas em 25 anos, em algumas zonas a violência sexual atinge 70% das mulheres, e só numa província (Norte Kivu) estão identificados 130 grupos armados. Na Síria já morreram cerca de 500.000 pessoas, há cinco milhões de refugidos a viver em condições de desespero e mais de seis milhões de deslocados sem dinheiro sequer para passar a fronteira. “E o que é que eu posso fazer?” É nesta frase que nos refugiamos, é aqui que cavamos o fosso da humanidade e nos protegemos e perdoamos pela nossa inacção! Mas há sempre alguma coisa que podemos fazer. Há sempre.

O PAN quadruplicou a sua presença no Parlamento à custa do seu activismo pelos animais e natureza. Porquê? Porque efectivamente há uma preocupação crescente com a casa onde vivemos. E ainda bem que o activismo pelo planeta tem ganho um espaço prioritário na cabeça e nos corações da maioria das pessoas. Mas o que é cada cidadão português e Portugal na sua pequenez mundial pode fazer para salvar o planeta? Pode fazer a sua parte. Tão simples quanto isso. E pela humanidade o que é que estamos a fazer? Nada!

Se alguém na Assembleia da República ousar perguntar o que é que Portugal está a fazer para combater as 500.000 mortes de crianças por ano em África (todos os anos!) de Malária, certamente que a resposta será que em Portugal também há pessoas sem médico de família. Sem se perceber a quão desumana é esta junção de premissas, deixamos o mundo girar.

“A culpa é dos políticos!” é outro dos nossos refúgios preferidos. No entanto esquecemo-nos que em democracia, os políticos não são líderes, são seguidores. Seguem as vontades de quem os elege. E são eleitos pelas nossas vontades. Sejam políticos por convicção ou oportunismo, são as nossas vozes que os fazem falar!

Gritemos pela humanidade que vos garanto, alguém nos vai dar as respostas. As soluções serão duras, complexas, demoradas e vão necessariamente envolver uma grande fatia da população mundial, assim como as que estão implicadas em salvar o planeta. Mas são possíveis. E o que nós temos de fazer enquanto indivíduos e enquanto país, é muito simples: façam ver na vossa opinião, na vossa voz, no vosso voto que todos os seres humanos são iguais e têm os mesmos direitos.

O segredo é compreendermos o enorme poder da nossa individualidade. Parece pouco, mas é tudo. Façam a vossa parte. Façam-nos pensar no mundo.»

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17.8.20

Grandes árvores deste mundo (8)



Banhos Reais de Fasiledes, Gondar, Etiópia, 2013.

Estes Banhos Reais foram uma iniciativa do imperador Fasiledes e construídos durante o seu reinado (1632-1667). No vale do Rio Qeha, são constituídos por uma estrutura rectangular com muros de pedra, que todos os anos se enche de água para a Epifania (Timket), em que se celebra o baptismo de Jesus no Rio Jordão. As árvores «incrustaram-se» na pedra, como é bem visível.





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Carlos César, a piada da semana



Carlos César a apelar à união da “geringonça”, ele que sempre a detestou, vai ficar como a piada da semana e ainda hoje é segunda-feira.


«Dirigiu-se aos antigos parceiros de “geringonça” e disse que “é tempo de dizer ao BE, PCP e PEV, ou mesmo ao PAN, se são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente, mas claro, para a legislatura”, avisando que “assobiar para o ar” pode trazer “percalços” à esquerda. (…)
E lançou o desafio ao PS, BE, PCP, PEV e “também ao PAN” para se definirem de “uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”.»
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«Os extremos tocam-se»


Nos tempos que correm, é a frase preferida pelos que querem passar por moderados.
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O homem não tem o dom da ubiquidade


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O lar de Reguengos e o preço de encerrar um país pobre



«Não é apenas em Portugal que os lares são os espaços mais sensíveis para esta pandemia. Cá, acrescem problemas como a pouca qualificação dos funcionários e os lares ilegais. Será a justiça a avaliar o que a lei pode punir, caso se confirme a macabra conclusão do relatório da Ordem dos Médicos que a ministra decidiu que não valia a pena ler antes de dar uma entrevista em que este seria, previsivelmente, um dos temas principais. Não é todos os dias que se descobre que pessoas institucionalizadas morreram desidratadas. Por isso, é justo que as falhas na fiscalização e a responsabilidade política da ministra em relação ao que aconteceu no lar de Reguengos dominem o debate público. Sobretudo depois da entrevista catastrófica que deu ao Expresso.

Mas é bom recordar que a responsabilidade primeira é da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, proprietária do lar e dirigida pelo presidente da Câmara. É injusto sublinhar o trabalho extraordinário do sector social quando corre bem e ficar pelas responsabilidades de fiscalização do Estado quando corre mal. Quando se trata de transferir funções sociais do Estado o sector social está acima de qualquer suspeita, mas quando há ganhos políticos a tirar de uma tragédia lá se descobre que também nele reina a promiscuidade com interesses partidários (e económicos, e religiosos). Porque este é um problema transversal ao país, não apenas no Estado.

Sei que todos preferiam ficar por aqui. Mas há uma culpa coletiva que pesa sobre os nossos ombros. Alimentamos um equívoco há meses: o de que instigar o medo nas pessoas levaria a que se preocupassem mais com os mais vulneráveis, a começar pelos velhos. Nunca foi assim nas pandemias. Para além de revelarem as fragilidades que já existem na sociedade, elas tendem a exibir os instintos mais primários e egoístas. E é por isso que os velhos de Reguengos foram abandonados. Porque o medo foi instigado até à crueldade. É verdade que, pelo menos ali, os problemas nem sequer começaram com o covid. Ele só agudizou o abandono. Ali e um pouco por todo o lado. O isolamento em relação às famílias e à sociedade nunca poderia ser bom para os mais velhos. Era só mais fácil, no meio do pânico.

Agora, que começa a vir à superfície o preço encerrar um país pobre em casa e nos lares, serão os que exigiram que isso se fizesse depressa, em força e sem ponderações os mais lestos a procurar os culpados pelos custos do confinamento. As doses cavalares de medo, que a absurda repetição quase diária em telejornais do número de mortos e infetados alimentou, tem forte responsabilidade no abandono destes velhos. E nos muitos que morreram por não procurarem ou não encontrarem apoio médico noutras doenças. E nas crianças roubadas do seu crescimento saudável. E no suicídio económico do país.

Estou nos antípodas da irresponsabilidade de um Bolsonaro ou de um Trump. Há uma pandemia e temos de ter cautelas. Mas a morte pela cura está mesmo a consumar-se. E estas mortes terão de pesar na consciência de quem, mesmo depois delas, não tenha a coragem de correr alguns riscos no regresso ao mínimos de normalidade. Comecemos por nos redimir abrindo todas as escolas, já em setembro, apoiados em estudos que nos dizem que é isso mesmo que temos de fazer.

Quanto aos lares, espero que este macabro episódio (que, como escreveu o Henrique Raposo, mobilizou menos indignação do que a tragédia de Santo Tirso) tenha pelo menos servido para deixar claro que o isolamento dos velhos nos lares é um crime. Morrer velho por causa de uma pandemia é, desde que às vitimas tenha sido dado o direito de escolha lúcida e informada, uma tragédia. Mas faz parte das tragédias humanas. Morrer abandonado e desidratado é uma inaceitável crueldade. Todos acabaremos por morrer, mas as mortes não são todas iguais. Pelo menos no que dizem da sociedade em vivemos.»

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16.8.20

Grandes árvores deste mundo (7)



Giant Javan Fig Tree, Royal Botanical Gardens, Peradeniya, (perto de) Kandy, Sri Lanka, 2011.

A origem destes jardins remonta a 1371, quando o rei Wickramabahu III subiu ao trono e levou a corte para Peradeniya. Esta árvore tem mais de 100 anos e diz-se que cobre uma superfície de cerca de 2.000 metros quadrados.


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E isto é um elogio?


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1957 foi ontem e Salazar também


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Da Cabreira a Chico Buarque



«Há dias, a Paula Ferreira escrevia sobre uma reunião familiar na Cabreira, iria estilhaçar-se um ritual de 30 anos? Eu e a tribo acoitados lá, consultei o espelho - mesmo sem beijos e abraços, sendo o geronte anfitrião, que mensagem transmiti? Coragem? Inconsciência? Fadiga do estado de alerta?

Pontos de interrogação cravados num só pano de fundo - o medo. Emoção mais do que legítima; indispensável! Quantos de nós teriam sucumbido ao apetite de outros animais se, após diálogo com botões inexistentes, não tivessem buscado refúgio num ramo de árvore? Pode o instinto de sobrevivência ser confundido com cobardia? Não creio, o oposto do medo não é a coragem, mas a inconsciência. Coragem é vencer o medo que nos revira as entranhas e seca a boca.

Ou seja, a pandemia não o inventou, ele acompanha-nos há muito tempo. É verdade que o medo do contágio transformou alguns em "agorafóbicos", o Mundo transformou-se numa ameaça constante, resignamo-nos a viver entre quatro paredes a nostalgia do impossível - o risco zero.

Deixámos a Cabreira, deixemos a pandemia. Em termos gerais, o medo é um carcereiro feroz e ambicioso. Fecha-nos numa pequena cela que se vai transformando numa ala inteira da prisão, de um T1 raquítico voámos para um Alcatraz alucinado. De um medo específico passamos a outro, de largo espectro, que vai proibindo a socialização e a aventura que é a vida. Até não haver apenas distanciamento dos outros, mas de nós mesmos; é da nossa identidade que abrimos mão.

Em "A Política do Medo", Al Gore citava uma frase lapidar de Brandeis: "Os homens temiam as bruxas e queimavam as mulheres". (Para variar, os bruxos homens tinham menos a temer.) Constatação histórica de um "talento" do medo - transformar-se em ódio. O que vive em nós e é temido, projecta-se no Outro, como os filmes nas paredes da aldeia no genial "Cinema Paraíso".

Em tempos de populismo eufórico e instáveis movimentos de massas, é caso para perguntarmos o que pode acontecer. Nas ruas, veja-se as recentes ameaças a cidadãos e cidadãs anti-racistas, e nas urnas, utilizadas por quem as despreza para aumentar o seu poder. Não precisamos de recuar cem anos para saber como terminam esses processos autofágicos.

Para não se trair, a Democracia assegura os direitos de quem anseia fazer dela uma sinistra paródia. Cabe-nos impedir que medos legítimos, manipulados por demagogos, se tornem álibis para autos de fé em que as chamas devorem a (imperfeita) Cidade construída no pós-25 de Abril.

Sob pena de voltarem a fazer sentido os versos do Chico (Saltimbancos, 1976) em plena ditadura,

"Alô, liberdade
Levante, lava o rosto
Fica em pé
Como é, liberdade...»

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