«Quando, há 70 anos, a primeira bomba atómica, a Little Boy, explodiu sobre Hiroshima, 70 mil pessoas morreram, e outras tantas morreriam nas semanas imediatamente subsequentes. Talvez não fosse logo evidente que uma nova etapa na existência humana tinha começado, mas os norteamericanos deram-se logo conta do impacto militar e humano. (...)
Ponto de chegada de uma escalada alucinante na construção de uma capacidade técnica de destruição definitiva sem paralelo na história – Truman explicou-a aos japoneses como “uma chuva de destruição [a rain of ruin] vinda do céu, diferente de tudo o que se tenha visto nesta terra” (comunicado presidencial de 6.8.1945) –, a Bomba, a par de Auschwitz, tornou-se um símbolo do triunfo da civilização tecnológica e da sua intrínseca insensibilidade social e humana, capaz de reorganizar o mundo precisamente porque capaz de destruir um número inconcebível de vidas através de processos expeditos, incompatíveis com qualquer discriminação entre combatente e civil e com qualquer reflexão sobre o valor intrínseco da vida. (...)
Além disto, como estudou Garry Wills (autor de Bomb Power, 2010), a preparação da bomba atómica foi acompanhada de uma bateria de leis que “contribuíram para criar os regimes de segurança e de vigilância sob os quais vivemos hoje, concedendo ao [poder] executivo uma margem de acção considerável, não só em tempo de guerra mas também em tempo de paz”. (...)
Quem julga que vivemos hoje com mais garantias cívicas do que aquelas de que dispunham as chamadas democracias nos anos 30 ou 40, que muito se melhorou na transparência do exercício do poder, precisa de avaliar as consequências destes 70 anos de securitarismo nuclear que atravessou a Guerra Fria mas que se prolongou, e acentuou, nos últimos 25 anos. (...)
Sobre o silêncio das vítimas de Hiroshima construiu-se a viabilidade de todas as guerras desde há 70 anos. Por algum motivo Kenneth Bainbridge, o físico que dirigiu o ensaio nuclear final de 16 de julho de 1945, ao ver os seus resultados, terá dito a Robert Oppenheimer, o chefe do Manhattan Project: “A partir de agora, somos todos uns filhos da puta” (“Now we are all sons of bitches”).»
Manuel Loff
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