Rui Bebiano (RB) comentou, em A Terceira Noite, uma recente crónica de João Bénard da Costa (JBC) no jornal Público de 12/8 sobre a reintrodução do latim na liturgia católica, que foi objecto de um documento papal datado de 7 de Julho («Summorum Pontificum»).
Globalmente, não discordo do conteúdo dos dois textos, mas a sua leitura suscitou-me algumas reflexões.
Em primeiro lugar, não hesito em considerar que este acto de Bento XVI configura (mais um) claro e significativo retrocesso em relação a uma das mais importantes aquisições do Concílio Vaticano II – a celebração da liturgia em línguas vivas e entendidas pelos participantes. Ela foi então um meio decisivo de responsabilização e de reforço do sentido comunitário.
Corresponde também, parece-me que inequivocamente, a uma cedência a grupos tão conservadores que, nalguns casos, até foram condenados pela própria Igreja e dela excluídos. É por exemplo o caso da fraternidade de S. Pio X, dirigida durante muitos anos por monsenhor Lefebvre e cujo sucessor Bento XVI se apressou a receber em 2006. Foram aliás dos primeiros a mostrar regozijo pelo documento agora publicado.
É, ainda, uma «recentralização» reforçada de poderes em Roma e na civilização ocidental.
Note-se que o uso do latim nunca foi proibido, mas é agora alargado e generalizado. Talvez valha a pena sublinhar alguns elementos novos neste documento:
• Qualquer grupo de cristãos pode pedir uma missa em latim. Se o pároco não lha proporcionar, deve contactar o bispo e, em último caso, a comissão pontifícia «Ecclesia Dei»
• É possível exigir que os sacramentos (baptismo, casamento, etc.) sejam administrados em latim.
• Qualquer padre pode celebrar em latim sem ter de pedir autorização ao seu bispo, como era o caso até agora.
Claro que podem coexistir, num mesmo local, liturgias em latim e em vernáculo. Mas algumas experiências, nomeadamente em França, têm dado origem a conflitos e choques de grupos «rivais». O que é, no mínimo, lamentável...
Qual o sentido de tudo isto? O JBC, o RB, eu e todos os que crescemos antes do fim da década de 60, e que frequentámos igrejas, nunca tínhamos conhecido um cenário sem latim. Além disso, percebíamos apesar de tudo alguma coisa – é que a nossa língua até é parecida, certo? Mas alguém entende que, em pleno século XXI, se ponha sequer a hipótese de um chinês, um zambiano ou mesmo um finlandês repetir frases que não percebe, em diálogos próprios de papagaios e não de seres humanos responsáveis?
Dito isto, volto a JBC e a RB. Ambos referem, em termos diferentes, que a incompreensão do que se dizia em latim reforçava o mistério do ritual. Talvez, mas não vislumbro quaisquer virtudes nesse reforço.
Mas sou evidentemente sensível, isso sim, à incontornável herança estética de toda a criação musical ligada ao latim. Estou a pensar, por exemplo e especificamente, no Canto Gregoriano. Não esquecerei nunca a beleza, quase arrepiante, de uma missa de Natal a que assisti na Bélgica, a vivo e a cores, num mosteiro masculino de beneditinos. Um dos monges que a cantava era o historiador José Matoso, então, tal como eu, estudante em Lovaina.
As voltas que o mundo dá! Tantas que até o latim regressou, primeiro de mansinho, agora pela passadeira vermelha – com sapatos Prada, vermelhos eles também.
2 comments:
Cara Joana,
Concordo com tudo. Aquilo que me parece, e esse é um outro aspecto, é que a dimensão cerimonial, simbólica, tanto mais mágica quanto incompreensível, faz parte do núcleo que estrutura as Igrejas e produz maior impacto entre os seus fiéis. Ressalvando-se as buscas minoritárias de uma certa espiritualidade, estes valorizam essencialmente o rito e o mistério. Igrejas «compreensíveis» são Igrejas doentes na relação com a sua dupla missão de dissolução do sujeito e de subjugação das consciências.
... pois se assim é, manifesto desde já a minha total disponibilidade para subscrever um abaixo assinado, a enviar à Santa Sé, que exija a missa dita em RONGORONGO :(
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