6.2.19

A sua amiga negra



«Eu sou negra. Devido a artigos que já publiquei aqui no PÚBLICO sobre racismo, tenho amigos e amigas brancas bem chegados que me dizem que uma negra a escrever sobre o racismo é menos levada a sério que uma pessoa branca. Até fazem a comparação com um homem que escreve a favor do feminismo. Um homem branco que escreve com uma perspectiva anti-racista ou feminista é mais ouvido, não é? Legitima a causa. Pode até ser admirado. É lindo. E o impacto é diferente. Sofre menos retaliações, quando sofre. Nas últimas semanas, a seguir aos acontecimentos no bairro da Jamaica, tenho lido uma série de artigos sobre o racismo. Embora os primeiros artigos escritos por pessoas negras comecem a aparecer a conta-gotas, a discussão foi feita maioritariamente por homens brancos. Será que os meus amigos e amigas brancas têm razão? De qualquer forma, neste artigo posso posicionar-me como a amiga negra dos leitores, sobretudo se o leitor não tiver uma amiga ou amigo negro para fazer o que sabiamente sugeriu Rui Tavares. Embora não seja das minhas experiências pessoais com as diferentes formas de racismo que quero falar neste texto.

Com o objetivo de gerar reflexão positiva entre pessoas brancas, vou seguir o raciocínio dos meus amigos e, num ato de exercício intertextual, vestir-me-ei com a “voz branca” e empática da académica Robin Diangelo. Ela é uma mulher branca, norte-americana e escreve, estuda e fala sobre o racismo e anti-racismo para pessoas brancas. Publicou em 2018 o livro White Fragility: why it is so hard for white people to talk about racism (livro ainda não traduzido para português), já considerado um “New York Times Bestseller”. Vou deixar aqui algumas das ideias centrais do seu livro, que considero elucidativas e necessárias para a discussão e meditação sobre o racismo no espaço público português actual.

1. O racismo vai muito além do indivíduo. O racismo é um sistema de opressão, assim como o sexismo. Só para citar um dado histórico, os homens brancos deram o direito ao voto às mulheres sufragistas nos EUA em 1920, mas somente às mulheres brancas. Mulheres negras nos EUA só tiveram este direito concedido depois de 44 anos, em 1964. O racismo sistémico começa com uma ideologia, e refere-se às ideias dominantes que circulam na nossa sociedade. Desde o nosso nascimento, somos condicionados a aceitar estas ideias e a não questioná-las, diz Diangelo (p.21).

2. Para entendermos bem o que é o racismo, precisamos primeiro de diferenciá-lo do mero preconceito e discriminação. Preconceito refere-se a um pré-julgamento de uma pessoa com base no grupo social ou racial à qual ela pertence. Discriminação consiste em pensamentos e emoções, incluindo estereótipos, atitudes e generalizações que são fundamentadas em pouca ou nenhuma experiência e que são projetadas em todas as pessoas de tal grupo. Neste sentido, pessoas negras podem discriminar pessoas brancas, mas elas não têm o poder social ou institucional que transforma o preconceito e discriminação delas em racismo. O impacto do preconceito delas em relação às pessoas brancas é temporário e contextual. Pessoas brancas detêm o poder institucional para imbuir o preconceito racial em leis, políticas públicas e educacionais, práticas e normas societárias, de uma forma que uma pessoa negra não tem. Logo, uma pessoa negra pode exercer preconceito e discriminação, mas não pode ser racista, defende Diangelo (p.19, p.22).



3. Cidadãos brancos podem ser contra o racismo, mas beneficiam-se à mesma de um sistema que privilegia os brancos como grupo. Estas vantagens são conhecidas como o “privilégio branco”, um conceito sociológico que se refere aos benefícios dados como adquiridos por pessoas brancas e que não pode ser usufruído da mesma forma por outros grupos raciais. Isto não quer dizer que não existam pessoas brancas desfavorecidas ou pobres que sofram preconceito. Existem, claro. No entanto, elas não enfrentam as barreiras criadas pelo racismo sistémico, que é devastador (p.24). A supremacia branca (esta não se restringe a grupos radicais) está na base da sociedade e instituições, e é especialmente relevante em países com uma história colonial.

4. Ao desdobrar-se sobre os três pontos acima, Robin Diangelo argumenta ao longo do seu livro que todas as pessoas brancas reproduzem padrões racistas. Todas as pessoas têm preconceitos, especialmente raciais, numa sociedade profundamente dividida por raça. Uma pessoa branca pode ter amigos ou namorados negros, e ainda assim praticar o racismo, digo eu. Ser ou não racista nada tem a ver com a dicotomia: boa ou má pessoa. O racismo não é um evento causado por atitudes individuais. É uma estrutura. De facto, há estudos científicos de psicologia, feitos em Portugal com crianças brancas e negras portuguesas e citados em White Fragility (p.84, 85) que constatam que as crianças brancas podem demonstrar atitudes de hostilidade racial já aos seis anos de idade. As crianças podem ser racistas não por serem más, mas sim por interiorizarem certas normas sociais profundamente enraizadas na nossa sociedade. A contínua negação do racismo é por isso cómoda e perversa. Se sou branca e me posiciono como não racista, que me resta fazer? “O racismo não é problema meu e nada tenho a fazer.” Esta visão, cúmplice de atrocidades como ódio racial, limita o pensamento crítico sobre o racismo e impede uma pessoa branca de usar o seu privilégio para desafiar as desigualdades raciais, inclusive entre as crianças.

5. Por fim, face a tensões raciais ou questões sobre o racismo, as pessoas brancas passam por um processo que Robin Diangelo conceptualiza como “fragilidade branca” (tradução literal), que tem a ver com uma série de reações defensivas. Isto inclui emoções como ira, medo, culpa e comportamentos como ignorar o assunto por completo. A fragilidade branca é um mecanismo para restabelecer o conforto e a hierarquia racial, e rejeitar mudanças. Mas atenção. Esta fragilidade branca não é uma fraqueza. Pelo contrário, nasce sim de uma superioridade. A fragilidade branca em Portugal nas últimas semanas tem sido exacerbada. O melhor exemplo é uma expressão com a palavra “bosta” ganhar mais peso que a situação lamentável que a gerou.

Para terminar, cito diretamente Robin Diangelo: “A nossa socialização racializada faz com que tenhamos comportamentos racistas, independentemente das nossas intenções ou autoimagem. Devemos continuar a perguntar-nos como o nosso racismo se manifesta, e não se.” Reflitam.»

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