21.12.19

Flor de estufa com espinhos



«Divertido, Marcelo Rebelo de Sousa troca piadas com André Ventura. O deputado que finge ser contra o sistema está visivelmente excitado por estar em Belém. E o Presidente não resiste a mandar uma laracha sobre o “vergonhoso”, envolvendo-se de forma ligeira num assunto interno de outro órgão de soberania. Para Ventura a política é uma anedota, para o Presidente não pode ser. É evidente que a admoestação de Ferro Rodrigues foi deslocada. Deu pólvora a quem vive de fogo de artifício. Mas o enfado de Ferro é a outra face da bonomia de Marcelo — mesmo depois dos EUA e do Brasil, tudo dança a música que o artista escolhe. Convém, por isso, pôr as coisas no seu lugar. Foram inúmeras os vezes que quem dirige os trabalhos do Parlamento chamou à atenção de deputados por termos usados. Umas com razão, outras nem por isso. Desta vez foi sem ela, mas não houve qualquer consequência prática. Muito menos censura. O Chega! apenas conseguiu transformar um banal incidente parlamentar em tema nacional, com direito a conferência de imprensa e outdoor.

Não foi só o outdoor. Mal foi dado o tiro de partida, tropas virtuais espalharam rios de ódio pelas redes sociais, com calúnias abjetas sobre o Presidente da Assembleia da República. Os mesmos que ao primeiro reparo se atiram para o chão num pranto, vítimas de ignóbil censura, lançam na lama quem se atreva a levantar-lhes a voz. Com eles todas as mesuras são poucas, para os outros todo o insulto é justificado. Os mesmos que organizaram abaixo-assinados para que Joacine Katar Moreira nem pudesse tomar posse declaram-se mártires do regime por um deputado que apoiam ser admoestado. Umas flores de estufa com picos aguçados. Mas a duplicidade de critérios é a base da sua tática. Veja-se o Brasil. Anos a queixarem-se do “politicamente correto” e, chegados ao poder, querem levar os humoristas da Porta dos Fundos à justiça por terem feito um filme a brincar com a sexualidade de Jesus. Até uma comissão parlamentar de inquérito querem criar.

Há quem ache que os devemos ignorar. Com Bolsonaro não resultou. Que devemos reagir sempre com indignação ou ridicularizá-los. Com Trump não resultou. Que os devemos integrar. Na Alemanha dos anos 30 não correu bem. Eu acho que se deve atacar onde lhes dói. Se uma das razões do voto é a insegurança social, exibe-se o programa de que o Chega! tem agora vergonha, onde se propõe a total privatização do SNS e da Escola Pública, a desregulação laboral e a redução drástica dos impostos para os ricos. Mostra-se como são eles os amigos da “elite do regime”. Se é por causa do descrédito da política, fala-se da pensão vitalícia que o porta-voz Sousa Lara recebia ou do candidato às europeias que é arguido por alegada burla ao Estado, como se fez esta semana. E como se vê com Trump, nem é certo que isso resulte. A degradação do espaço mediático e a banalização do escândalo tornou os cidadãos menos exigentes, não mais. De resto, é ser implacável quando pisarem o risco. Não permitir que se infiltrem nas forças de segurança para minar o Estado de direito. Não deixar que usem as redes sociais para a difamação. É mantendo o foco, não alimentando o circo com admoestações deslocadas, que se defende a democracia que eles querem atacar. Aí e no combate às causas profundas que levam cada vez mais gente a desistir do único sistema político que, com todos os seus defeitos, a pode representar.»

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