2.7.20

A normalidade é uma ilusão: a crise não



«A interrupção da vida quotidiana causa pela pandemia de covid-19 na Índia lembrou-me uma chocante decisão de Narendra Modi em Novembro de 2016: descontinuar 86% da moeda indiana (desmonetização); o desaparecimento abrupto de dinheiro prejudicou a cadeia de fornecimento e fez com que o desemprego sistémico piorasse a vida dos indianos mais pobres – interrompendo as suas vidas – do mesmo modo que a pandemia os afecta agora. Devido à covid, o Estado indiano, como outros, enfrentou uma situação anormal – uma suspensão da normalidade. O que significa a normalidade para a população indiana? A quem serve a normalidade?

Para os milhões de trabalhadores informais a “normalidade” pode ser uma ilusão. Durante o lockdown indiano centenas de trabalhadores migrantes morreram e desapareceram da superfície da sociedade, sem deixar rasto. Trabalhadores informais, vendedores de vegetais, fazendeiros pobres, vendedores de rua, pessoas em situação de rua – todos são partes dessa normalidade da excepção. Eles têm vivido, desde sempre, uma situação dura, uma vida anormal sendo a normalidade para eles. Essas pessoas, pessoas de lugar de abjecção como nos diz Julia Kristeva, sobrevivem com escassos salários diários, enfrentam a violência policial e têm a apatia do resto da sociedade – isto, diariamente; possivelmente, a normalidade é apenas uma ilusão para eles.

O lockdown na Índia forçou a deslocação da população migrante. A pandemia não é uma situação de crise que podemos claramente opor à normalidade; essa é uma crise permanente para milhares de trabalhadores e trabalhadoras migrantes – incapazes de garantir mesmo a própria alimentação – que foram forçadas a regressar a pé às suas cidades, enfrentando descalças centenas de quilómetros, sem comida e sem poderem aceder aos transportes, que pararam. A crise, para eles, não é uma excepção em relação à dita normalidade. Já tantas vezes sentiram a interrupção das suas vidas diárias que a palavra “normalidade” perdeu o sentido para eles.

As suas vidas foram sabotadas pelo “discurso da normalidade”, que faz parecer que as suas vidas são vividas na normalidade, como os restantes compatriotas. Na verdade, foram encurralados num inescapável ciclo de crises pelo Estado, pelas corporações e pela classe média privilegiada. A maioria vive em favelas; sentem a crise através da extrema pobreza, da fome, da doença e da profunda desigualdade salarial. A crise é uma parte essencial das suas vidas, vidas onde a ideia de “vida normal” está ausente.

Eles são o fundamento invisível da sociedade visível, fundamento sobre o qual a nação e o Estado se mantêm. Sem eles, a sociedade indiana não poderia funcionar. Para os 450 milhões de trabalhadores informais indianos, a vida nunca foi normal. Se é que a sua própria existência importa ao Estado indiano – eu tenho sérias dúvidas sobre isso. Sem seguro de saúde, em condições de trabalho precárias, sem segurança social, baixos salários; as suas vidas têm sido um permanente estado de crise, mesmo durante os ditos “tempos normais”.

Durante o infame lockdown indiano, vimos os cadáveres dos pobres, dos famintos, dos pedintes, desempregados, trabalhadores migrantes, mulheres e crianças – desumanamente espalhados ao longo do país. Mesmo nos tempos ditos normais, eles já morriam assim; morriam de fome, de doença, suicidavam-se devido a dívidas, morriam pelas mãos da violência estatal ou da discriminação estatrificada. Não obstante, foi durante os tempos anormais da pandemia que as suas mortes chamaram mais atenção e simpatia. Contudo, aqueles que sobreviveram agora morrem aos poucos com o desemprego, a inflação e a incapacidade para comprarem comida. A transformação necessária na Índia ainda está por acontecer.

De facto, a pandemia perturbou profundamente a vida de milhões, a nível global; contudo, foi a incapacidade da liderança de certos países que exacerbou a crise. O caos organizado do governo da Índia levou a uma crise humanitária de proporções épicas, reproduzindo desigualdades já existentes e aprofundando a exclusão da população marginalizada. São tempos como estes que atestam a capacidade do Estado para assegurar as necessidades básicas da população vulnerável. Em tais crises, a liderança efectiva poderia evitar o desastre, como aconteceu no caso de Portugal e da Nova Zelândia.

Em Portugal, em contraste com a Índia, foi adoptada uma abordagem humana no combate à pandemia. Foi dado tempo suficiente para que as pessoas se organizassem antes que a emergência nacional passasse a ser efectiva – aos indianos, foram dadas apenas horas antes do lockdown – ninguém foi brutalizado pela polícia e o transporte público passou a ser completamente gratuito para todos. No entanto, entristeceu-me ver, em Lisboa (aonde estive durante o lockdown), como alguns empresários da comunidade asiática, principalmente bengaleses, paquistaneses e chineses exploravam os seus empregados asiáticos. Salários diminuídos, extensão das horas de trabalho, demissões sem direitos, coacção, incumprimento do contrato de trabalho – esses são algumas das violações dos direitos humanos a que me refiro. Durante o lockdown, trabalhadores asiáticos sofreram nas mãos dos patrões asiáticos. Mas, em tempos normais, eles sofrem o mesmo destino, diariamente. A normalidade, provavelmente, é uma ilusão para eles – mas a crise não é. Dor, agonia e frustração que emergem da crise é algo bastante real para eles.

Finalizando, pode-se dizer que a pandemia instaurou uma crise de carácter excepcional para as elites e para a classe média. Contudo, para os milhões de trabalhadores migrantes indianos a crise é a normalidade. A pandemia expôs a fragilidade da sociedade indiana. Mostrou o desprezo da sociedade indiana aos seus trabalhadores migrantes. O quanto as sociedades podem aguentar forças de voláteis disrupções – só o tempo dirá. A pandemia pode até ter redefinido a ideia de normalidade aos privilegiados. Mas para os excluídos, marginalizados e discriminados, o conforto da normalidade foi sempre uma ilusão.»

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