18.11.20

A culpa da extrema-direita não é da esquerda. É dos convertidos e facilitadores de direita

 


«Parece um conto surrealista mas não é: apesar da derrota, em 2020 Trump teve mais dez milhões de votos que em 2016. Quatro anos de miserável, incompetente, boçal, esquizofrénica presidência Trump depois, dez milhões de pessoas gostaram tanto do que viram que correram a votar. Foi a prestação de Trump como Presidente que lhes ganhou o voto. 

Acrescente-se aos recém-convertidos a base eleitoral republicana que permaneceu leal ao Presidente, não renegando adoração com os escândalos e subterrâneos morais em que Trump a cada semana se enredava. E concluímos: os eleitores de Trump votam na peça porque a apreciam. Gostam do conteúdo e deliram com o estilo. 

Nos últimos quatro anos garantiram-nos que as direitas de índole trumpista eram culpa dos tresloucados desvarios da esquerda, da corrupção, das feministas e dos gays com a mania de sair da casca, de Hillary Clinton que era tão, mas tão corrupta que obrigou os pobres dos eleitores a votar num Presidente que encheu a administração de lealistas, incluindo filha e genro, e aproveitou o cargo para gerar clientela aos seus hotéis e resorts. Ora, é falso: votam na direita populista-reacionária porque gostam deste produto político. A nova direita não é uma reação à esquerda, é um movimento revolucionário por direito próprio. 

E, como ficou escancarado com a não aceitação da derrota de Trump, nem valorizam a democracia. Preferem um líder autoritário defendendo os interesses exclusivos dos seus indefetíveis. Não se incomodam se for corrupto, desde que entregue resultados impondo os seus valores. O que lhes repugna é a convivência democrata, aceitar a decisão das maiorias e negociar consensos. 

Foi uma descoberta que fiz desde 2016. Pessoas que considerava politicamente próximas de mim afinal deleitadas com um racista, boçal, misógino, com passado financeiro sinuoso. Almas que ingenuamente reputara de liberais de súbito apreciando um isolacionista e protecionista com discursos nacionalistas e ataques vis à liberdade de imprensa. 

E as numerosas acusações de apalpões, assédios e violação? Davam os possíveis crimes como ‘questões da vida privada’ (obrigada pela posição política de considerarem mulheres objetos a serem apalpados a gosto) e, na verdade, mostravam-se deliciados com os abusos de Trump. Finalmente, um político punha as mulheres no seu lugar. (A misoginia de Trump tem um apelo tão grande que até os homens negros e latinos votaram com expressividade em Trump em 2020.) 

Cidadãos deveras escandalizados com abusos autoritários e mentiras de Sócrates, porém sorridentes e babados com as falsidades compulsivas de Trump e a essência de animal feroz que não permitia escrutínio ao seu poder, que tentava ilimitado. Ateus de sempre, possuidores em tempos de pouco subtil escárnio pelo catolicismo, transformados em defensores da cristandade (daquela que nada tem que ver com fé, mas sim com clubismo cultural divisivo). 

Nem só em Portugal esta mudança ocorreu. Anne Applebaum escreveu um livro este ano, O Crepúsculo da Democracia, contando a sua experiência com numerosos ex-amigos que saíram da direita democrática para abraçarem a extrema-direita, desde celebridades como a apresentadora da Fox News Laura Ingraham até jornalistas ou intelectuais, com influência mas menos conhecidos. Na versão inglesa tem o subtítulo O Falhanço da Política e [sintomaticamente] a Separação de Amigos. 

Applebaum recorrentemente conta festas ou reuniões acontecidas nos anos 1990 ou no início dos 2000, frequentadas pelas pessoas da então a direita. E termina comentando que muitos desses participantes já não falam entre si. Atravessam a rua se avistam ao longe algum dos antigos amigos, para não se cruzarem. Os centristas e os extremistas já não se toleram mutuamente. 

Parece a história da minha vida nos últimos anos, perplexa e horrorizada assistindo a quem tinha escrito blogues comigo ou tido almoços prazenteiros de discussão política, pessoas que me convidaram para projetos procurando uma direita aberta, cosmopolita e moderna, afinal defenderem – com gosto e convicção – ideias atentatórias da democracia e da dignidade da maioria dos seres humanos (entre os quais eu, por ser mulher). 

Este movimento de radicalização existiu na direita em porções significativas, e não foi culpa da esquerda. Ainda não passou tempo suficiente para conseguirmos perceber de onde vieram as deslocações tectónicas. Alguns serão somente oportunistas. No PSD, a maioria estará nessa prateleira. Por alguma razão obscura, vinda da bolha em que os partidos tendem a viver e os afasta da realidade do eleitorado, convenceram-se que o país quer o regresso a uma moral salazarista, de gente séria, austera, deixando os vícios e os excessos para os degenerados ricos das grandes cidades. 

Contudo, para muitos, o meu palpite vai na linha de não ter havido mudança. Simplesmente estão confiantes, nestes últimos anos, da admissibilidade de demonstrarem as suas ideias sem filtros. 

Por outro lado, o espaço político da extrema-direita não engloba só o Chega. Inclui os que a promovem e os que não se lhe opõem. Há muitos adeptos da tal nova direita e confessos admiradores de Trump na IL. No CDS, Nuno Melo aspira a ser um herdeiro conservador-populista se a estrela de Ventura se apagar. No PSD, tantos admiram pouco secretamente Ventura. Todos, com ímpetos suicidários, têm-se esforçado por promover a extrema-direita. De tão enlevados com as novas/bafientas ideias, nem percebem que promover um concorrente que com eles dividirá um número finito de eleitores lhes retirará votos e deputados. 

Neste momento vejo a direita em muito maus lençóis – moralmente e eleitoralmente. Mas só tem de se queixar de si própria. Por não ter tido líderes que conseguiram construir uma plataforma progressista e reformista de direita, optando ideologicamente por um regresso à moral e ordem social passadas, não terem entranhado a democracia. Podem gritar com a esquerda quanto quiserem: os pecados continuam próprios e de criação exclusiva da direita. 

Como se resolve este imbróglio ideológico e moral da direita? Não sei. Desde logo porque a direita que se opõe à deriva extremista é reduzida. Tendo a pensar que somente com consequências muito dramáticas desta radicalização à direita, em algum país, se mudará a maré. Escalada de terrorismo, ditadura declarada, atropelos aos direitos humanos. E, por cá, se ficarem eleitoralmente em cacos o partido de extrema-direita e os partidos facilitadores. Para que renasça outra direita diferente.» 

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