«Ainda estamos longe de um pedido de desculpas ao mais alto nível, que um dia acontecerá. Até lá, devemos perceber melhor o tráfico de escravos do Atlântico e como Portugal e os portugueses se envolveram. Um caminho que nos ajudará a melhor perceber o mundo global de hoje e reconhecer o quanto foi feito à custa da repressão dos mais fracos. Um passado que nos põe de sobreaviso sobre a necessidade de se resolverem problemas actuais, à escala global. O mundo pode e deve ser diferente.
Os dados são claros. Entre 1500 e 1875, foram embarcadas nas costas de África cerca de 12,5 milhões de pessoas escravizadas, tendo chegado ao seu destino, na sua esmagadora maioria às costas das Américas, cerca de 10,7 milhões. No mesmo período, foram embarcadas 5,5 milhões de escravos para o Brasil, onde chegaram 4,9 milhões. Na última década do século XVIII, o pico desse tráfico, foram traficadas cerca de 80 mil pessoas por ano, morrendo 8.500 na viagem. A participação de Portugal e do Brasil, enquanto colónia, nesta gigantesca operação tem de ser entendida.
A descoberta do Atlântico deu lugar a um império que pôs Portugal entre as nações mais abertas ao comércio transoceânico. Um bom indicador desse relevo é o valor do comércio por habitante. Desde 1600, Portugal encontrava-se à frente da Espanha, com ou sem o comércio de prata e ouro e, a partir de 1700, ombreava com a Inglaterra e a Holanda, só sendo significativamente ultrapassada por estas nações em finais do século XVIII.
O tráfico de escravos por navios portugueses de Portugal ou do Brasil era todavia proporcionalmente maior do que o comércio de ouro e de mercadorias. O que explica esse maior envolvimento de Portugal? O facto de ser o colonizador de uma parte significativa da costa ocidental de África e do Brasil é uma explicação necessária mas não suficiente, pois quem colonizava, como a história o demonstra, não estava escrito na pedra.
Para responder cabalmente àquela pergunta, é preciso compreender que o tráfico de escravos se inseria numa complexa rede de comércio que envolvia várias partes do mundo. Não se tratava simplesmente de navios que saiam de Lisboa, aportavam nas costas africanas, viajando depois para o Brasil carregados de escravos, para depois regressarem a Lisboa com açúcar ou ouro. Era mais do que isso e são várias as ideias sobre o assunto.
Uma delas [narrativas] , baseada na investigação sobre negócios efectuados, navios embarcados ou histórias concretas de negociantes, introduz um circuito mais complexo. Fala-nos de navios, saídos de Lisboa, carregados de panos vindos da Índia, usados para pagamento dos escravos na costa africana, depois traficados para o Brasil, onde os negociantes locais os pagavam com prata, adquirida a troco de ouro no Rio da Prata, na actual Argentina, prata essa que era depois remetida para Lisboa, usada para pagar os panos comprados na Índia e assim fechar o círculo. Os capitais deste comércio podiam ser portugueses, brasileiros, indianos, espanhóis, ingleses ou holandeses, seguindo os fluxos financeiros de então, cada vez mais globais. Deve aqui acrescentar-se, para melhor compreensão dessa rede, que a Índia tinha a prata como principal meio monetário.
Nesta história, entram os comerciantes e traficantes de Lisboa e do Brasil, os traficantes africanos, os colonos espanhóis do Rio da Prata, os comerciantes indianos, e os capitalistas de várias origens. Toda uma rede global em que os africanos escravizados se viram envolvidos, enquanto elo mais fraco. Esta visão alargada do tráfico de escravos mostra a complexidade da operação e a multiplicidade das responsabilidades. Mostra também que a globalização, deixada ao mercado livre, com responsabilidades mútuas e repartidas, sem peias, sem política, pode levar e levou a resultados assim. Essa é sem dúvida uma lição da História.
O tráfico de escravos terminou, em meados do século XIX, quando era ainda negócio rentável e por deliberada acção política, guiada pelo iluminismo e pela incipiente opinião pública de então.
Portugal, um dia que decida tomar a sua responsabilidade nesta história, estará em boas condições para recordar que a boa globalização é aquela que é bem supervisionada. E que, hoje como dantes, os dias são sempre de acção e não de contemplação.»
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