1. Caxemira e a Coreia do Norte marcaram a política internacional dos últimos dias. Em ambos os casos há poderes nucleares de facto envolvidos. Em ambos os casos os conflitos situam-se na Ásia, num longínquo Oriente ou Extremo Oriente, na visão do mundo usual dos europeus. No caso da Coreia do Norte, devido à presença do Presidente dos EUA, Donald Trump, a visibilidade mediática acabou por ser grande. No caso de Caxemira, o confronto militar fronteiriço entre a Índia e o Paquistão pareceu mais uma disputa exótica ocorrida numa obscura região montanhosa, nos confins do Norte do subcontinente indiano, próximo dos Himalaias.
Pelo seu passado recente, os europeus estão habituados a que os seus conflitos — e os que se passam nas regiões envolventes, como o israelo-palestiniano — sejam a coisa mais importante do mundo. Isso hoje é uma grande ilusão. Esse mundo está a desaparecer e de forma muito rápida. Era assim há um século quando a disputa franco-germânica sobre a Alsácia-Lorena tornava as rivalidades entre os dois países uma ameaça à paz mundial.
Acontecimentos como assassinato de 1914 do herdeiro do trono da Áustria-Hungria, em Sarajevo, na Bósnia, tiverem repercussões mundiais. O mesmo ocorreu nos anos 1930 com os alemães dos Sudetas na antiga Checoslováquia, e a questão de Dantzig e do corredor polaco. Foram pretextos para a Alemanha nazi anexar a Checoslováquia e invadir a Polónia. Foi o desencadear de uma segunda guerra europeia com repercussões mundiais. Hoje, vistos do mundo exterior à Europa, vistos do mundo não euro-atlântico, provavelmente são conflitos ocorridos em lugares remotos, sem grande importância para o mundo actual, a não ser por curiosidade histórica.
2. Os mapas usualmente (não) mentem, mas podem criar uma visão do mundo ilusória. Enquanto europeus, estamos habituados a olhar o mundo da forma que Gerardus Mercator — nome latinizado do geógrafo e matemático flamengo Gerhard Kremer — nos habituou desde o século XVI. A ele devemos a ideia da projecção cilíndrica do globo terrestre, feita sob a forma de um mapa plano. Devemos-lhe também a centralidade da Europa nessas projecções cartográficas do mundo.
Os mapas mundiais, os planisférios que nos são familiares e estão baseados nos referidos trabalhos de Gerardus Mercator contêm, no entanto, distorções significativas na representação dos continentes. A Europa surge no centro do mundo, o que pode compreender-se dado tratar-se de um olhar europeu sobre este. Mas o mapa dá a ideia de uma área terrestre europeia superior à efectivamente existente, o que ocorre, de uma forma acentuada, por exemplo, no caso da Península da Escandinava ou da Gronelândia. Ao inverso, por exemplo, a Índia, a América do Sul ou a Austrália estão sub-representadas na sua dimensão, sugerindo áreas significativamente menores do que as reais.
Mas esta longa era de eurocentrismo iniciada nos séculos XV e XVI — e que o planisfério de Mercator bem exemplifica — à qual o crescente domínio económico, político e militar da Europa no mundo dava plausibilidade, acabou abruptamente em meados do século XX.
3. Politicamente, o fim de um mundo centrado na Europa stricto sensu começou a tornar-se evidente a partir de 1945. A partir daí, EUA e União Soviética dominaram a política mundial. Todavia, a ruptura não foi radical como poderia parecer à primeira vista. Num certo sentido, o domínio do mundo passou a ser feito por prolongamentos da Europa — um euro-asiático (a Rússia), o outro euro-atlântico (os EUA). Isso permitiu continuar a ver o mundo e os seus conflitos através de ideologias políticas europeias, embora protagonizadas por outros: o socialismo-comunista e a democracia capitalista-liberal. Nesse aspecto, o fim da Guerra-Fria e da União Soviética em 1989-1991, deixando na última década do século XX a política mundial dominada pelos EUA, continuou a ser um terreno fundamentalmente familiar.
A grande ruptura está a ocorrer neste início de século XXI, com a gradual transferência do poder económico, político e militar para a Ásia-Pacífico. Enquanto europeus, habituámo-nos a ver o mundo que contava para o rumo dos acontecimentos mundiais como estando situado em Paris, Londres e Berlim. Mais recentemente em Moscovo e Washington. Temos grande dificuldade em apreender um afastamento, agora bem maior, do centro do poder mundial. Está a deslocar-se para uma enorme e heterogénea área que vai de San Francisco, na costa americana do Pacífico, até Pequim e Nova Deli, na Ásia. Uma área geográfica muito afastada da Europa, e que, se a tendência se confirmar, a tornará periférica no longo prazo.
4. A visão eurocêntrica é ainda um quadro intelectual bastante comum, muito enraizado por razões contraditórias e que vão além do já apontado. A mais óbvia é ser um legado do colonialismo e imperialismo do passado. A menos óbvia é ser também um legado do ideário marxista que se lhe opunha. Isso é visível no pensamento de Karl Marx formulado no século XIX, mas também nos modelos centro-periferia da segunda metade do século XX, usados para explicar a relação entre um centro (desenvolvido) e uma periferia (subdesenvolvida). Foram comuns nos anos 1960 a 1980, sendo impulsionados pelos trabalhos de Andre Gunder Frank e de Samir Amin, entre outros.
Em particular no campo da Sociologia o modelo centro-periferia, inspirado na análise marxista do sistema internacional, permitiu explicar o subdesenvolvimento e a dependência do chamado Terceiro Mundo. Numa versão mais recente, similar explicação foi dada pela teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein, influente nos anos 1990, nos primórdios da globalização.
Apesar da crítica feita ao colonialismo e imperialismo europeu, em qualquer uma das suas versões são teorias fundamentalmente eurocêntricas. São uma espécie de imagem invertida da visão do mundo do escritor britânico Rudyard Kipling, do fardo da missão civilizadora do homem branco. Encontram aí a explicação para o atraso estrutural e dependência dos outros (a periferia). Para o bem ou para o mal, a acção europeia no mundo explicava (quase) tudo. Hoje não explica (quase) nada.
5. Do Próximo Oriente ao Extremo Oriente, na terminologia geográfica usual dos europeus do passado, o mundo está em rápida transformação. Turquia, Rússia, Irão, Índia, China e Coreia do Norte são Estados em crescendo de poder, que ambicionam ser potências mundiais ou regionais. Quase todos são herdeiros de grandes impérios do passado e dominaram inúmeros povos em diferentes momentos da sua história. Nesse aspecto, ironicamente, a Europa nada inventou e tem mais lições históricas a receber do que a dar. Quase todos são potências nucleares (Rússia, Índia, China e Coreia do Norte), ou ambicionam ser (Irão e, talvez também, a Turquia).
O quadro eurocêntrico que ainda persiste engana. Nos conflitos e rivalidades desta imensa região da Ásia-Pacífico, os europeus são hoje, quase sempre, espectadores impotentes: confrontos entre a Índia e o Paquistão em Caxemira, programa nuclear iraniano, disputas de soberania no mar do Sul da China, tensões entre a China e Taiwan (Formosa), capacidade nuclear-militar da Coreia do Norte.
A renovada centralidade da Ásia-Pacifico está a tornar as suas rivalidades e conflitos centrais no mundo globalizado do século XXI. A ascensão económica-político-militar da China e o declínio relativo de poder dos EUA intensificam-nos. A Alsácia-Lorena e Dantzig são o passado. Caxemira e a Coreia do Norte são o mundo de hoje e o futuro.
A Europa actual tem horror ao seu passado de guerras e fez mea culpa quanto ao domínio colonial. Quer viver em paz. Tornou-se um mercado e um museu. Não é certo que o resto do mundo mostre compaixão por tal arrependimento, nem deixe de projectar os seus conflitos violentos, tal como os europeus faziam no passado. O fim do eurocentrismo não trouxe a paz perpétua.»
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