15.10.20

Não deixe para o próximo ano o que deve fazer agora

 


«Na verdade, nem há opção, não há alternativa razoável que permita fasear ou adiar soluções. O desemprego real já ultrapassa os 10% e vai subir. As pequenas empresas estão estranguladas pela queda da procura interna. As exportações vão reduzir-se duradouramente, em particular o turismo. Ao mesmo tempo, com um mar de liquidez fornecida pelo BCE e com o aumento das poupanças precaucionárias, o valor dos ativos financeiros e da habitação continuarão elevados, alimentando bolhas perigosas. A fraude instalou-se numa parte do sistema bancário e reclama impunidade, acentuando incertezas e riscos. 

Entretanto, a crise sanitária, que se prolongará no melhor dos casos por bastantes meses, pressiona os extenuados serviços de saúde, as contas da segurança social e o dia a dia das famílias. O ano de 2021, por tudo isto, será um ano de tensão máxima para a vida das pessoas. É portanto melhor que a resposta orçamental não seja, como normalmente acontece em Portugal, uma mão cheia de anúncios e depois uma gota de água no oceano. 

Se quem lê estas linhas se lembrar da promessa de criação de um estatuto para responder às dificuldades de centenas de milhares de cuidadores informais e que se concretizou entretanto numa trintena de pessoas aceites para efeito dos apoios anunciados, percebe o que quero dizer. Neste tempo, a promessa não vale nada, o que se faz é que determina tudo. 

Ora, é nestes meses e no ano que vem que se tem de fazer – e que se pode fazer. Em 2021 não vigorarão ainda as regras europeias de austeridade que obrigarão a espremer o Orçamento em nome do défice, nem as regras que impõem a precarização do emprego, nem as que impedem uma política industrial ativa. Os critérios para determinar os rácios de capital dos bancos estão aliviados neste período e a normalização da vida da banca, sem fraude, seria um alívio para o país. 

Para um governo que saiba o que quer, é agora que pode estimular o investimento, reforçar a proteção social, reconstruir o Serviço Nacional de Saúde, apoiar planos industriais estratégicos, normalizar as regras do contrato de trabalho. Não haverá uma voz no tão temido Olimpo de Bruxelas que se atreva a recusar medidas desse tipo, que aliás outros países já estão a aplicar denodamente, de Espanha à França e à Alemanha. 

Acho mesmo que é uma exuberante demonstração de subserviência autoimposta que o Governo faça constar e um célebre comentador repita com gosto que, se o período experimental voltar a ser de três meses, o que até a troika permitia e só o PS quis ampliar, o governo holandês se abaterá sobre Portugal como um raio celestial e nos cortará os fundos. Tenho pena que se possa descer a esse nível de argumentação, que não tem a menor justificação a não ser um conformismo medroso que se vai tornando a marca da nossa classe dominante. 

Em contrapartida, se em 2022 a economia dos países do centro da Europa estiver em recuperação, as regras orçamentais e a disciplina ideológica de Bruxelas poderão ser de novo grosseiramente impostas e já sabemos como reage a elite portuguesa a essas ordens. Também por razões políticas, é por isso agora que o país pode conseguir uma política económica e social que responda à emergência e, mais ainda, que nos proteja estruturalmente das vagas seguintes. A atual configuração da relação de forças é a única que o pode permitir. É agora ou não será. Será, se o compromisso com Portugal determinar as escolhas dos próximos dias.» 

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