21.4.21

Como é fazer parte dos 97%?

 


«Se as palavras fossem categorizadas nos dicionários tal como nos laboratórios, de acordo com o seu grau de nocividade ou inflamabilidade, seria caso para dizer que o medo é uma substância extremamente corrosiva, altamente tóxica e facilmente explosiva.

O ano de 2020 e os primeiros, mas tão longos, meses de 2021 podem ser facilmente caracterizados pelo medo sentido pela população. Seja ele pelo receio gerado perante as incertezas criadas no contexto de pandemia, ou por todos os problemas estruturais a níveis social, cultural, político e económico, que se agravam com o passar de cada mês. O dia de amanhã é uma total incógnita e, para quem tenta fazer contas à vida, é impossível não se corroer, a cada segundo de cada minuto, com tudo aquilo que se passa e, principalmente, com o que não se passa à sua volta.

Este último ano foi também de protestos, não só contra os novos desafios que têm surgido, mas, simultaneamente, contra todos os problemas pré-existentes na nossa sociedade, que se tendem a agravar.

No início de Março de 2021, o desaparecimento da londrina Sarah Evarard, de 33 anos, chocou a Inglaterra e o resto do mundo. Porém, de acordo com o The Guardian, o caso não é “incrivelmente raro”; isto porque a insegurança na rua é usual na vida de uma mulher e o assassinato de Sarah Everard veio apenas reafirmar essa realidade.

Todas nós já saímos de casa de amigos depois de anoitecer, já nos questionámos se deveríamos ir ou não a pé para casa, e acabámos por fazer um telefonema para não caminharmos totalmente sozinhas. Sempre com muito cuidado, a observar e interpretar o ambiente que nos envolve como se a nossa vida dependesse disso porque, muitas das vezes, depende.

Depois da morte da jovem inglesa foi conduzido um estudo para averiguar a percentagem de mulheres que já foram alvo de assédio sexual na rua em Inglaterra e, nesse seguimento, conclui-se que 97% das mulheres, entre os 18 e os 24 anos, já tinham sido alvo de abusos em espaços públicos. Desde cedo aprendemos a lidar com esta realidade porque “é normal”. Uma em cada dez mulheres na União Europeia já foi vítima de assédio sexual, sendo que o risco é superior para as jovens com idades compreendidas entre os 18 e os 29 anos, o que só nos afasta, dia após dia, da nossa meta, cujo prémio final é a igualdade de género.

Viver nesta condição torna-se tóxico, a constante necessidade de alerta, a antevisão do que se passa à nossa volta, o calcular dos possíveis desfechos das diversas vezes que somos abordadas, até mesmo compreender qual é a reacção mais adequada a adoptar para que se evite qualquer tipo de tragédias.

Há quem me oiça e diga “Que exagero, foi só um assobio”, mas da última vez, depois do assobio veio um apalpão, depois de um olhar veio uma pequena, mas para mim muito longa, perseguição, e não me consigo deixar de questionar “O que é que vai acontecer? O que é que devo fazer? Será que vai ser hoje? Até onde é que esta situação pode escalar?”. E finalmente expludo. Expludo e como todas as outras mulheres que são alvo de abusos na rua, chego a um ponto de ruptura e digo “Basta!”.

O assédio sexual não existe só na sua forma física, mas diz respeito a “todo o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”, define a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Todas as “pequenas” mas grandes acções contribuem, de alguma forma, para a deterioração da dignidade feminina e da sua segurança em espaços públicos.

Cabe a cada um de nós, enquanto cidadãos, informarmo-nos e tentar compreender o que se passa à nossa volta e de que forma é que os nossos actos podem estar a contribuir, mesmo que de forma passiva, para agravar ou eternizar a violência da qual as mulheres são alvo. Vivemos numa sociedade que apresenta os seus preconceitos de base, cuja profundidade muitas das vezes não conseguimos avaliar, mas que não é por isso que deixam de estar presentes no nosso dia-a-dia, ou que não são responsáveis pela normalização de comportamentos abusivos e degradantes à condição humana.

É importante procurarmos fomentar conversas de consciencialização junto de rapazes e de homens, aliados essenciais para que se possa combater estas atrocidades. Começa por ouvirmos os testemunhos das mulheres à nossa volta e procurarmos debater junto da nossa família e amigos sobre todos os comportamentos responsáveis pela perpetuação deste ciclo de violência, para que estes também o façam junto das pessoas que os rodeiam. As palavras não são ocas, acarretam os seus significados e. tal como se faria num laboratório, é importante expormos os riscos às quais estão associadas.

A informação e a educação permitem-nos chegar mais longe, desconstruir problemas de fundo e, acima de tudo, neutralizar o pior elemento químico presente no dicionário, a ignorância, essa que tão sorrateiramente vem de mão dada com o medo.»

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