4.2.22

Contribuintes suecos indignados, contribuintes portugueses resignados

 


«Em 1994, havia cinco regimes preferenciais para contribuintes com mobilidade internacional: no Reino Unido, Irlanda, Países Baixos, Bélgica e Dinamarca. Em 2020, eram já 28. O grande aumento aconteceu entre 2008 e 2012, quando o número de regimes especiais praticamente dobrou.

Entre 2009 e 2020, os reformados que se mudassem para Portugal pagavam 0% de IRS. Portugal foi o primeiro país europeu a inventar um esquema para pensionistas com isenção total de impostos, segundo o relatório New Forms of Tax Competition in the European Union: an Empirical Investigation, publicado em novembro de 2021 pelo European Union Tax Observatory. Mas foi logo imitado (não necessariamente com borla total) por Malta em 2011, Chipre em 2015, Itália em 2019 e, finalmente, Grécia em 2020. Numa entrevista ao PÚBLICO de março de 2021, a ministra das Finanças da Suécia dizia explicitamente que “eles [a Grécia] ‘copiaram’ o vosso regime fiscal. Portanto, estamos a tratar [os dois países] da mesma forma.”

Estes regimes especiais têm dois objetivos. Aumentar a receita fiscal – captando uma base de tributação de que de outra forma não estaria presente no país. Mas também beneficiar a economia, por exemplo, criando novas empresas, ou melhorando a qualidade das existentes, pela incorporação de mão de obra mais especializada. Por outro lado, têm vários custos. Não quero ser mal interpretada: estas pessoas são muito bem-vindas! Podem é vir na mesma, pagando mais impostos.

Um custo provável é o aumento de preços que diminuem o poder de compra dos residentes habituais. Estudei recentemente o impacto do alojamento de curta duração (Airbnb e companhia) no mercado imobiliário em Lisboa (com o Duarte Gonçalves e o João Pereira dos Santos), no artigo Short-term rental bans and housing prices:Quasi-experimental evidence from Lisbon. O preço das casas em Lisboa aumentou 68% entre 2016 e 2019, mas o congelamento do alojamento local implementado em 2018 diminui os preços entre 8 e 20%, apenas nos apartamentos mais pequenos. A nossa conclusão é que não é apenas o alojamento local que explica o preço das casas nos centros históricos das cidades. A pressão de subida causada pelos residentes fiscais não habituais, com uma capacidade financeira muito superior a quem vive de salários portugueses, é certamente uma parte da história.

Outro custo destes esquemas é que contribuem para uma degradação da perceção de justiça dos impostos, dado que estes contribuintes mais ricos e privilegiados pagam uma taxa de imposto mais baixa, o que é suscetível de causar desconforto nos restantes. Isto pode levar à erosão da chamada moral tributária, ou “tax morale” que é um determinante importante do cumprimento das obrigações fiscais. Há vários estudos que mostram que a motivação das pessoas para pagar impostos depende do sistema de fiscalização, mas também de normas sociais que levam os contribuintes a cumprir as suas obrigações independentemente da probabilidade de serem detetados no seu comportamento de fuga e serem multados. Um dos possíveis determinantes destas normas sociais é a perceção de justiça do sistema.

No artigo Norms, Enforcement, and Tax Evasion, que está quase a ser publicado na Review of Economics and Statistics, os economistas Tim Besley, Anders Jensen e Torten Persson analisam a introdução da poll tax no Reino Unido em 1990, um imposto do mesmo montante (em libras, não em percentagem) para todos os adultos em idade de votar. A evasão fiscal nos 346 municípios (councils) do País de Gales e de Inglaterra analisados pelos autores era em média de 3% antes da introdução da poll tax, mas subiu para entre 10 e 15% em apenas dois anos, entre 1990 e 1992. Os autores citam funcionários tributários que falam do “desenvolvimento de uma cultura de não pagamento” na comunidade e atribuem este aumento repentino e expressivo da evasão fiscal à injustiça do imposto.

Podia ser que as pessoas que pagam impostos normalmente em Portugal aceitassem a injustiça do regime dos reformados (que desde 2020 consiste numa taxa única de 10%) ou dos trabalhadores com profissões de elevado valor acrescentado (que consiste numa taxa única de 20%) porque por cá quantificámos as vantagens destes regimes e preferimos engolir o sapo em troca de ganhos substanciais. Só que ninguém conhece esses ganhos.

Há cerca de 45 mil residentes fiscais não habituais que beneficiaram de um total de 600 milhões de euros de borlas de IRS em 2019. Mas não podemos afirmar que todos deixariam o país se o regime não existisse ou se as taxas de imposto aplicadas fossem superiores. A receita de IRS gerada pelos reformados antes de 2020 é fácil de estimar: zero euros. Também não vêm criar valor pelo seu trabalho. Portanto esta borla fiscal só pode ser justificada pelo seu consumo, que viria dinamizar a economia local. Mas quanto podem consumir estas pessoas para trazer assim tanto valor à economia? Eu não sei, mas desconfio que o Governo também não.

Quanto aos outros – os que vêm trabalhar – precisamos de estudos que utilizem os registos individuais e anonimizados destes contribuintes. Por exemplo, no Migration and Wage Effects of Taxing Top Earners: Evidence from the Foreigners’ Tax Scheme in Denmark, publicado em 2014 no Quarterly Journal of Economics, os autores analisam um esquema semelhante na Dinamarca e concluem que a taxa preferencial de 30% (em vez de 60%, que seria a taxa correspondente ao nível de rendimento) mais do que duplicou o número de residentes não habituais. Neste caso, o esquema preferencial dura apenas três anos. Os autores também concluem que, apesar de o esquema atrair contribuintes, estes não trazem benefícios aos rendimentos dos restantes trabalhadores, talvez porque acabam por ficar pouco tempo no país. Evidência deste género é essencial para decidirmos se queremos o esquema, com que taxa e com que duração.

A resignação dos contribuintes portugueses levou a ministra das Finanças sueca a afirmar em março que é “interessante” e até “fascinante” observar “como os portugueses aceitam isto”. A taxa foi aumentada para 10% em 2020 sob pressão dos contribuintes suecos que, através do seu governo, fizeram saber que achavam injusto que os seus compatriotas ricos e reformados viessem viver para o paraíso fiscal português, enquanto eles ficavam na Suécia a pagar impostos a sério. Mas queriam mais: alterar o acordo de dupla tributação, para poderem cobrar impostos na Suécia aos suecos residentes em Portugal (para além dos 10% que estes entretanto já pagavam por cá). O Governo português comprometeu-se em 2019 a ratificar esta alteração. Nunca o fez.

Os contribuintes suecos perderam a paciência e agora os reformados suecos vão ser tributados como se estivessem a viver na Suécia - assim eliminando qualquer vantagem fiscal de estarem em Portugal. Pelo menos, agora sabemos que a indignação dos contribuintes suecos também é atraída pela borla de IRS. Só que não é para dela beneficiar. É mesmo para acabar com ela.»

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