7.1.12

Ainda a propósito do Golpe de Beja e de um texto de Paulo Varela Gomes


Foi com emoção que li um texto de Paulo Varela Gomes no P2 do Público de hoje, ele que é o filho mais velho de um dos protagonistas da uma das mais importantes tentativas falhadas para derrubar o salazarismo. É também com estas memórias dos filhos das vítimas da ditadura que se tece a nossa História e é absolutamente fundamental que sejam preservadas! Nessa medida, este texto é exemplar.

Não conheço o Paulo pessoalmente. Ou melhor: vi-o uma vez, de raspão, em 1967, quando fui a sua casa ter com a mãe, Maria Eugénia Varela Gomes, para ela me entregar uma carta que o Paulo escrevera ao Papa Paulo VI, poucos dias antes da chegada deste a Portugal, pedindo-lhe que intercedesse pela libertação do pai, então ainda a cumprir os seis anos de pena a que fora condenado por causa de Beja. O objectivo era que a carta em questão fosse entregue na Nunciatura e, por razões que já expliquei em tempos mas que não vêm agora ao caso, era-me fácil desempenhar discretamente a tarefa. A Maria Eugénia acredita que a iniciativa foi eficaz e que à mesma se ficou a dever a redução das medidas de segurança a que o marido estava sujeito, de um ano e meio para seis meses. Nem sei se o Paulo se lembrará dessa carta, mas hoje, ao ler o seu texto, ela «regressou».

Não será fácil a quem nasceu ou cresceu em liberdade «sentir» o significado destes pequenos factos: uma carta de um adolescente que tem o pai preso pela PIDE, uma entrega semi-clandestina de um texto dirigido a um Papa cuja visita não se desejou mas da qual se tentou tirar partido, etc., etc., etc. Mas foi também assim que chegámos à liberdade. E que temos de a defender, como o Paulo tão bem sublinha no fim do seu texto: «A iniquidade não pode vencer.» Texto, belíssimo, que aqui fica na íntegra, já que não se encontra acessível online.


Aquilo que é necessário

Na manhã do dia 1 de Janeiro de 1962, eu, o meu irmão e as minhas duas irmãs fomos acordados, não pelo meu pai ou a minha mãe como era costume, mas por um tio e uma tia. Mandaram-nos vestir um roupão sobre os pijamas e acompanhá-los. Atravessámos a curta distância que separava da casa do meu avô materno a casa onde vivíamos, e à qual nunca mais voltei. Durante semanas só nos disseram coisas vagas. As empregadas do meu avô calavam-se de repente quando passávamos. Soubemos depois que a família não tinha a certeza que o meu pai sobrevivesse aos ferimentos de bala que sofrera no ataque ao quartel de Beja na madrugada daquele dia 1. A minha mãe estava presa. Voltou para casa um ano e meio depois. Ele, ao fim de seis anos. Lembro-me: a minha mãe, a quem não deixaram abraçar os filhos pequenos, encharcando com lágrimas os punhos cerrados de fúria com que agarrava as grades do parlatório de Caxias. O nosso terror. O meu pai, numa cela da Penitenciária de Lisboa, entubado, magríssimo, a voz quase apagada, um fantasma desvanecido contra a luz da janela, aquele homem que eu recordava grande, alegre, garboso na sua farda. Desapareceu de vez a infatigável alegria do meu irmão, um miúdo palrador e de olhos cheios de luz. Ganhou dificuldades de fala e endureceu. Nunca mais encontrou a paz. Por mim, fui adolescente a querer ser homem sem ter para isso pai. Não foi fácil e não se tornou menos difícil depois. As minhas irmãs, eu sei lá, nunca falamos disso. A família juntou-se para nos acolher e ajudar, houve amigos que estiveram à altura da ocasião, mas vivíamos com alguma dificuldade. Quando a minha mãe foi libertada, tinha perdido a profissão que a PIDE a impediu de retomar. Arranjou os empregos possíveis. Dormia pouquíssimo, trabalhava loucamente e aguentou tudo. Só perdeu a juventude e a saúde.

Quando visitávamos os meus pais em Caxias, em Peniche, encontrámos pessoas que sofreram muito mais que nós e estavam muito mais desamparadas. Especialmente os familiares de militantes do PCP, gente heróica sem bravata. Aprendemos que, para além dos nossos pais e dos que, com eles, foram a Beja (alguns, com menos sorte e resistência física que o meu pai, para lá morrerem), havia em Portugal muitas pessoas rectas que, ao fazerem o que era necessário fazer, causaram danos colaterais como aqueles que a minha família sofreu. Aprendemos que é mesmo assim, que nada se consegue sem danos colaterais. Aprendemos também, todavia, que a maioria das pessoas não suporta esta ideia e quer somente paz e sossego. É a vida, mas felizmente haverá sempre aqueles que são maiores que a vida. Se os não houvera, a iniquidade venceria necessariamente.

Coincide com os 50 anos da Revolta de Beja a perseguição movida pelo regime que hoje vigora em Portugal contra Otelo Saraiva de Carvalho, o operacional responsável pela revolta seguinte, o 25 de Abril de 1974. Que isso não nos impeça de dizer e fazer o que é necessário. A iniquidade não pode vencer.
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7 comments:

Anónimo disse...

Obrigado, Joana, por me ter permitido ler este texto que, de outro modo, não leria.
Faz doer um cadinho, até pelas memórias que nos traz ao de cima da nossa memória, mas vale a pena ler. Pena que não seja lido por todos.

Simão Gamito

Joana Lopes disse...

De facto, Simão, este texto é muito bom. Obrigada pela sua «fidelidade»...

Anónimo disse...

Agradeço-te, Joana, teres-me facultado este texto. Ainda não me refiz da emoção... Com a minha idade, já não sei se me comovo porque tenho uma ternura infinda por esta gente – meus/nossos irmãos, definitivamente! – ou, talvez, porque revivo situações como as referidas e cuja dor ainda traz em tumulto os tais efeitos colaterais de que fala o Paulo. Sou amiga desta família desde 1961 e tenho por todos uma extraordinária admiração. Cada um à sua maneira, eles foram e são exemplo de uma dignidade ímpar. As suas vidas tocam-nos pela coerência, pela Coragem e pela Verdade. Na minha juventude, a Maria Eugénia Varela Gomes foi o meu único ídolo no feminino. Eu era então comunista e ela não. Mas tudo o que presenciei naquela casa, durante este período da prisão do João VG, e o seu comportamento exemplar na PIDE fizeram dela um mito, aos meus olhos. Hoje, sigo-lhes os passos com uma amizade familiar, mas a memória do que foram, a sua lucidez e a coerência que as suas vidas mantêm não deixam de me surpreender.
Um abraço para todos. Um beijo ao Paulo (não fica bem agradecer, não é? - mas apetecia-me...)
Lena Pato

Ana Paula Fitas disse...

Olá Joana,
fiz link... deste e de outro post.
Obrigada.
Bom Ano.
Um abraço.

Helena Cabeçadas disse...

Belo texto este do Paulo Varela Gomes e que eu ainda não tinha tido ocasião de ler. Sempre admirei a integridade e a coragem do coronel e da Maria Eugénia.

Helena Barroso disse...

Joana, que não conheço. Parabéns por reproduzir este texto do Paulo Varela Gomes, que ainda me enternece, quando vejo a grande qualidade de seu trabalho como historiador, creio-o.
Conheci a Maria Eugénia e o João Varela Gomes, ali numa casa na Rua das Pedras Negras , perto do Castelo de S.Jorge, ou talvez a Rua acima dessa. Eu e meu marido, Mário Barroso, admirávamos a coragem deles. Não me lembro porque os visitámos mais que uma vez...Decerto, antes de serem presos...

O texto do Paulo, recordou o que eu sabia e os meus fantasmas de abandono, face a meus filhos, visto ter também quatro filhos da idade dos filhos deles e vir a conhecer a dor daqueles pais e das crianças, anteriormente felizes, por andarem de "mão em mão" de familiares.
Foi por causa dessa dor de mãe/filhos, que nós, eu e Mário, decidimos participar na luta anti fascista um de nós, por sua vez.

Sempre os admirei e só muito mais tarde os vi, muito fragilizados fisicamente, a mesma expressão doce e atenta.

Já se passaram muitos anos, decerto já não são vivos. O texto do Paulo deveria ser divulgado. Não sei se o posso retirar do blog.

Bem Haja Joana e o seu Blog!

Maria Helena Barroso, tenho 80 anos...

Joana Lopes disse...

Helena,
Muito obrigada pelo seu comentário. Ainda bem que este blogue é descoberto como pessoas assim…
Os pais Varela Gomes ainda estão vivos, embora certamente muito fragilizados. E é óbvio que pode tirar daqui o texto do Paulo e fazer dele o que entender!
De novo, obrigada. Joana Lopes