19.5.18

Futebol: o reservatório da violência alimentado pelo dinheiro, pelos media e pela complacência de todos



José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Como é que se põe uma bola para baixo quando ela está quase sempre em baixo? Na verdade, como é uma bola, está sempre ao mesmo tempo para cima, para baixo, para o lado. Mas, pensando bem, por que razão deveria estar para baixo, quando esta espuma dos dias violenta é um tão bom negócio para tanta gente? Minha cara gráfica do PÚBLICO, coloque a bola na sua posição normal, e a mais oficial das bolas, porque isto do futebol é uma coisa séria, com o beneplácito das mais altas instâncias da nação. Deixe vir o esquecimento rápido do ritmo dos media e tudo vai continuar na mesma.

Por muito que se bata no peito e se façam os protestos habituais e se digam todas as coisas convenientes, não é preciso ser um telepata nem um adivinho para perceber que são coisas de muita circunstância e pouca substância e que na verdade ninguém está muito indignado com o que se passou. Digo isto, porque coisas semelhantes ocorrem ciclicamente, segue-se uma onda de indignação e depois volta a velha complacência de sempre: “são coisas do futebol”...

Têm razão, são de facto coisas do futebol. Ou, dito doutra maneira, são coisas onde circulam legal e ilegalmente muitos milhões, muito mais milhões do que em 90% das empresas portuguesas. São um maná para uma comunicação social que não sabe viver sem futebol, ou melhor sem “este” futebol, o dos Brunos, dos Pintos, dos Vieiras, dos No Name Boys, dos Super Dragões, da Juve Leo e quejandos, que parece que tem um espasmo para não lhe chamar outra coisa, sempre que há um “derby”. São um maná para o poder político que precisa de circo quando não há pão e onde Centeno e os seus antecessores abrem os cordões à bolsa para que haja sempre surtos patrióticos a propósito da bola, cheios de bandeiras e bandeirinhas, cachecóis e varandas engalanadas, cheios de Portugal gritado a plenos pulmões, quando ninguém mexe uma palha num país que perde soberania todos os dias.

O que se passa diante dos nossos olhos, trazido pelas prestimosas televisões e por uma multiplicidade de directos na rádio e capas de jornais, não engana ninguém. Só não vemos porque não queremos ver. As claques de futebol dos grandes clubes são as únicas associações de criminosos que funcionam à luz do dia. Esta gente viola todas as leis, matam pessoas, praticam extorsões várias, organizam gangues, com negócios obscuros, droga, protecção e segurança nocturnos e diurnos, executores de vinganças e ajustes de contas, e exércitos que desfilam nas nossas ruas protegidos pela polícia como animais perigosos que de facto são. Ah! bela juventude com as nossas cores, azuis, vermelhas e verdes, a que só falta cantar a Giovinezza ou o Cara al Sol! E é mais por ignorância do que por falta de vontade.

Ai não sabem? Se não sabem, é porque não querem saber. Há futebol puro e limpo para além disto? Não, não há, isto conspurca tudo e todos são cúmplices. Eu espero sempre que nem um cêntimo dos meus impostos vá para estas mafias, nem para dar “ utilidade pública” a estes empórios do crime e da corrupção, nem para pagar as medidas excepcionais de segurança dos jogos tidos como “perigosos”, nem para os bancos que perdoam empréstimos aos clubes mas recebem de todos nós milhões, e por aí adiante, mas espero sentado.

E agora prometem-nos mais uma despesa com uma Autoridade Nacional contra a Violência do Desporto para esconder a enorme responsabilidade do Estado, da justiça, dos governos, dos partidos neste estado de coisas. Quase que posso jurar que se já existisse, com os seus locais, gabinetes, pessoal pagos pelo Orçamento do Estado, nada poderia contra os espécimes que os adeptos, os sócios, as claques, as ilustres figuras públicas, escolhem para dirigir os clubes e contra os bandos de matraca e faca que eles acolhem no seu seio. O que é que impede o Governo e a justiça de agir com os mecanismos que já têm? Nada, a não ser esta miserável complacência e cumplicidade que já Fradique Mendes, numa das suas cartas onde melhor retrata Portugal, atribuía ao nosso povo:

Senti logo não sei que torpe enternecimento que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós portugueses, nos enche de culpada indulgencia uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem
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