«O regresso lento à normalidade possível está a deixar muita gente nervosa e é compreensível. Uma coisa é obrigar as pessoas a ficarem em casa, outra, bastante diferente, é regular o seu comportamento com mais liberdade. No primeiro caso, a determinação e a repressão, quando necessária, chegam. No segundo, é a regulação e a autorregulação que contam. E isso implica que as pessoas cumpram regras para não pôr os outros em perigo e que outras controlem o seu medo, não transformando o seu direito à saúde numa carta branca para limitações abusivas às liberdades alheias. Um equilíbrio difícil.
A fase do confinamento foi um teste à nossa força de vontade e também ao nosso instinto de sobrevivência – é bom não esquecer que a disciplina da reclusão foi muito determinada pelas imagens de Itália e Espanha. A fase que se segue é um teste às capacidades de regulação de uma sociedade livre. Isto poderia ser uma metáfora: o primeiro momento testa as capacidades de uma ditadura eficaz, o segundo as de uma democracia avançada. O primeiro exige medo e força, o segundo civismo e democracia. Por isso, todos os elogios rasgados que temos dedicado a nós próprios devem ser guardados para a fase seguinte.
Mais do que nos critérios epidemiológicos e até económicos, são os critérios sociais que me parecem estar a falhar nos planos de reabertura. Passando ao lado da ideia de ter medidas diferentes para regiões mais ou menos afetadas ou de fazer os trabalhadores mais jovens, que correm menos risco, regressarem primeiro ao trabalho – propostas de grande melindre político –, concordo com a ideia de se definirem grupos de risco social, proposta por um grupo de especialistas da Universidade Nova.
A prioridade social falhou no calendário para a reabertura das escolas. Apesar de ter apresentado alguns argumentos válidos, o secretário de Estado da Educação, João Costa, não me convenceu das vantagens de começar pelos alunos do 11º e 12º ano. Continuo a achar que se deveria ter começado, como a maioria dos países europeus, pelos escalões mais novos. E talvez, como estes especialistas também defendem, por uma reabertura parcial para alunos em risco de insucesso. Parece-me que o Governo deu prioridade ao acesso à Universidade, prejudicando os pais que têm de regressar ao trabalho e quem está mais desamparado neste momento: as crianças mais pobres nas fase iniciais de aprendizagem, para quem estes meses valem muito.
De tudo o que terá de ser regulado, uma das fases mais longínquas é a que provoca maior stress: o acesso às praias, apesar de serem ao ar livre. Isto porque parece haver, e bem, um consenso político para não ceder a várias propostas de cortes de férias, semelhantes a países que não têm no turismo um elemento central da sua economia. Seria bom não começarmos já a fazer o que se fez em 2011, tomando medidas que terão como único efeito afundar mais depressa a nossa economia. Sem turistas estrangeiros, imaginem o que aconteceria às empresas responsáveis por 14% do nosso PIB se não fôssemos de férias. Só espero que os critérios para os limites de entrada nas praias não resultem na sua privatização de facto, já parcialmente conseguida tendo como expediente os parques de estacionamento. Também aqui se esperam critérios sociais.
Para que isto funcione e as pessoas cumpram a sua parte, é fundamental que o Estado lhes dê condições para isso. E as primeiras prioridades parecem-me ser os lares e os transportes públicos. Sabendo que os lares têm correspondido, em todo o lado, aos principais e mais perigosos focos de contágio, e tendo em conta o dinheiro que está a ser gasto, não há medidas demasiado caras para resolver este problema, quando os hotéis vão continuar às moscas. Quanto aos transportes, é preciso que garantam segurança. A começar pelos que servem as periferias. Estes são tempos em que testamos muitas coisas na nossa sociedade. Péssimos para tudo, excelentes para nos conhecermos.»
.
0 comments:
Enviar um comentário