21.9.20

Liberdade vigiada ou o "novo normal"

 


«Nesses dias, quando ligávamos a televisão, surgia no canto superior ou em rodapé a injunção maior: Fique em casa! Qualquer que fosse a dimensão do nosso medo, para aqueles que tinham habitação com condições mínimas de vida e trabalho não essencial à sobrevivência comum abria-se um tempo diferente dentro do tempo. 

Essa suspensão da ordem do tempo, da sua regulação e das suas rotinas, das suas imposições e da sua previsibilidade, trouxe-nos um sentimento que acompanha os grandes momentos de crise, as guerras como as catástrofes, a angústia de perder as referências do quotidiano e ficar de repente sozinho em frente de si próprio. O famoso paradoxo de Sartre "nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã" descreve essa situação em que, num mundo que não oferece mais qualquer segura referência que nos enquadre, somos obrigados nós próprios a assumir a liberdade das nossas escolhas de vida e a plena responsabilidade por essas escolhas. Há nesses momentos uma angústia pela perda de identidade misturada com uma estranha sensação de férias. 

Muitos tiveram de viver com o seu núcleo familiar numa coexistência estranha, porque permanente e incontornável; muitos tiveram de enfrentar a mais dura e desumana solidão. A subsistência para muitos estava longe de estar assegurada. A vida endurecia dia após dia. 

Nesse momento tornou-se evidente para todos que não era a mão invisível dos mercados que nos ia salvar, mas que era antes o Estado, o mais frio de todos os monstros frios, no dizer de Nietzsche, que poderia fazer alguma coisa por nós. 

E fez. Bem ou mal, convictos ou em negação, muitas vezes mais em cacofonia do que em solidariedade, os Estados foram assumindo responsabilidades e construindo respostas. Até a União Europeia conseguiu moderar temporariamente o apetite voraz dos chamados "frugais" pelos juros da dívida futura e abrir caminho para a criação de novos mecanismos de cooperação. Como em todas as grandes crises, não foi através da fábula das abelhas de Mandeville (cada um prossegue o seu interesse privado e é na conjugação desses interesses que se estabelece o interesse comum) que se pôde enfrentar a situação, mas sim através dos meios, militares ou financeiros, materiais ou humanos, de que um Estado ou um conjunto de Estados possa dispor. 

Se, como defendia a Sra. Thatcher, não existisse such a thing as a society, o mundo seria para os vírus e não para nós. 

Mas porque parece que vamos passar a viver numa liberdade condicionada a que chamam o novo normal, é preciso que os Estados não esqueçam até que ponto estão a desfigurar e a desnaturar a vida humana com a aplicação cega das regras sanitárias. A revolta decorrente dessa situação antinatural, em que só a aglomeração no trabalho é legítima e é ilícita a festa, irá constituir um perigosíssimo risco para a coesão social, que não pode ser subestimado. 

Só se pode desejar que, como achava Descartes com algum otimismo, o bom senso seja realmente a qualidade mais bem partilhada pelas gentes.» 

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