Octávio Passos
«Não correu “na perfeição”, diz o primeiro-ministro, dois dias depois. É uma expressão económica para explicar a evidência de uma inevitabilidade: as claques dos clubes finalistas da Champions só podiam pavonear-se na cidade, testar as polícias, ensaiar o seu ballet porradístico e emborcar litros de cerveja. Suponho que nenhuma autoridade ignorava que assim seria, mas, como foi explicado pelo secretário de Estado do Desporto, o evento estava destinado a prestigiar a Federação de Futebol e melhorar o seu ranking, além de deixar alguns trocos nos lojistas do Porto.
Aceitando o evento com somente duas semanas de antecipação, Portugal mostraria uma faceta acolhedora e complacente, que não deixará de sensibilizar os grandes do futebol, repete o secretário. Falhou a “bolha”, como não podia deixar de ser, parece que não conhecem as claques inglesas, mas teria ficado o prestígio.
Nada disto surpreende. Há aqui uma mistura entre parolice desportiva, aceitando que o poder dos clubes e eventos internacionais é um território de exceção (já foi assim com a Fórmula 1 no Algarve no verão passado), e a submissão ao turismo como o desígnio nacional. Venho porque Portugal é um país barato, repetem os desembarcados, e nós sabemos o que isso quer dizer. O Ministério discute as listas verdes e amarelas do Reino Unido como se fosse a prioridade da nossa diplomacia. Os noticiários festejam o número de charters de cada dia.
O turismo tornou-se o alfa e o ómega da economia: disfarça as estatísticas das exportações, o que fica sempre bem, cria uma rede de serviços sem valor acrescentado mas com liquidez imediata e alimenta uma cultura de conformismo e deslumbramento para com os visitantes, mesmo que para muitos destes seja indiferente se os vapores etílicos são absorvidos em Albufeira ou em qualquer outra latitude. Como é evidente, esta mistura entre subserviência futebolística internacional e contabilidade de turistas só podia dar asneira.
Os clubes nacionais protestaram e têm razão. Mesmo descontando o estilo atrabiliário de Pinto da Costa, como não reconhecer que, se pode haver público num jogo internacional, é absurdo proibir o público num jogo nacional? São as normas que tornam legível uma estratégia de combate à pandemia que exige a medida do nosso comportamento e, por isso, ao aceitar e mesmo promover a sua violação, as autoridades portuguesas colocaram-se numa situação impossível, não querem ser levadas a sério.
Se as regras têm aplicações distintas em função da nacionalidade do peão, então não são regras sanitárias, são truques económicos. Depois disto, a correr atrás do prejuízo, o governo pode vir a abrir a possibilidade de público em alguns acontecimentos desportivos ou outros. O que lhe coloca outro problema, esse pior: e os Santos Populares? O Governo dirá que não pode ser, e toda a gente pensará que se se puser a falar inglês talvez se safe e possa ir para a rua beber cerveja ou comer sardinhas.
Com a enorme vontade de retomar o convívio social, com os jovens a quererem voltar para a rua, o Governo teria que tratar com pinças os sinais que dá e criar as melhores condições para esse regresso à vida, rápido e seguro. Precisamos disso. O que não podemos ter é um passo atrás, sobretudo se resultar de erros evitáveis. No momento atual, o desastre da Champions tornou as autoridades sanitárias suspeitas e as imagens da pândega na Ribeira do Porto relativizaram todos os seus avisos e precauções. Assim, não sei se o Governo se dá conta da profundidade da mágoa que criou. Talvez ache mesmo que não foi tudo uma “perfeição” mas que a Federação está bem vista pelo jeitinho que deu aos seus parceiros europeus e segue jogo.»
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