«Em Abril de 1906, Alexei Peshkov visitou a América. Anos antes, adoptara o pseudónimo "Gorki", que significa "amargo", por entender que era sua missão denunciar sem contemplações a terrível verdade da Rússia dos czares. É como repórter socialista que Máximo Gorki viaja até aos Estados Unidos, num tour de propaganda e angariação de fundos. Tudo parecia bem encaminhado: recepção entusiástica de Mark Twain, digressão planeada nas costas leste e oeste, convite da Casa Branca, Gorki é acolhido por milhares de pessoas que esperaram longas horas à chuva pela sua chegada ao Novo Mundo. Recém-libertado dos calabouços de São Petersburgo, onde estivera preso por ter participado na rebelião falhada de 1905, muitos americanos encaravam-no, e à sua causa, com indisfarçada simpatia, considerando que era um imperativo histórico de justiça apoiar os revolucionários russos, da mesma forma que os revolucionários franceses de 1789 tinham apoiado os Founding Fathers e a sua luta pela independência. Gorki reciprocou, proclamando que a América era o país mais democrático do planeta. Seguiram-se banquetes de homenagem em clubes selectos de Nova Iorque ou nas residências de socialistas ilustres e endinheirados, entrevistas aos principais jornais da cidade, palestras ovacionadas. De súbito, a bomba. Descobriu-se que a mulher que o acompanhava, uma antiga actriz do teatro de Moscovo, e que dera entrevistas na qualidade de esposa ("Entrei numa das peças do meu marido, mas abandonei os palcos. Agora sou apenas a sua mulher"), não era afinal a legítima, que ficara na Rússia, à solidão e ao frio. "Madame Gorki", para mais, era - ou tinha sido - casada com um general ultraconservador, do círculo íntimo de Nicolau II. Twain mostrou-se ultrajado, a Casa Branca retirou discretamente o convite, cancelaram-se conferências, esfumou-se o plano de visita à Califórnia. Na América puritana, os responsáveis pelos serviços de imigração chegaram a fazer ameaças de expulsão e os Gorki andaram em bolandas em Nova Iorque, sendo sucessivamente despejados de vários hotéis da cidade. É com esse estado de espírito que o jornalista-escritor visita Coney Island, outrora a península dos konijnen ("coelhos", em holandês), agora o vazadouro hedonista das classes trabalhadoras de Nova Iorque. Aos fins-de-semana, milhares de pessoas acotovelavam-se no areal apinhado ou nas filas quilométricas para atracções e divertimentos colectivos de toda a espécie. Foi lá que surgiu a primeira montanha-russa, colossal, patenteada em 1884. Foi lá que inventaram o cachorro-quente, barato e rápido. Foi lá que, graças à recém-descoberta electricidade, se fazia praia até de noite, por turnos. Foi lá que instalaram a Vaca Inexaurível, posto de abastecimento de leite non-stop, máquina em formato de vaca que funcionava 24 horas por dia. Ou um hotel com a forma de elefante, do tamanho de uma catedral, onde numa das patas gigantescas, de 20 metros de diâmetro, existia uma tabacaria e, na outra, um diorama. Nos domingos de Verão, a praia de Coney Island era o lugar de maior densidade demográfica do mundo. À noite, o Luna Park iluminava-se pelo poder de um milhão e 300 mil lâmpadas eléctricas. Na Cidade dos Anões, onde se exibiam seres humanos de baixa estatura, o frenesi do lucro acicatava a promiscuidade e a luxúria: 80% dos recém-nascidos eram ilegítimos. A Babel capitalista, em suma.
Regressado à Europa, é no seu refúgio de Capri que Máximo Gorki escreveu um artigo a que chamou "Tédio", tão-só. Foi o imenso tédio das gentes, a sua indizível melancolia, o que mais o impressionou em Coney Island. Despontava então a civilização dos tempos livres e do ócio remunerado. Junto aos Jerónimos, Eça deparava com um trabalhador de filho ao colo, com a mulher de xale de ramagens, pasmando para a estrada, pasmando para o rio, a gozar pacatamente o seu domingo. Gorki, de seu lado, observava com repugnância as multidões em transe de tristeza, de olhares inexpressivos, que comparou a enxames de moscas pretas. As construções grotescas da "tecnologia do fantástico", como lhes chamou, marcaram-no pela sua "escassez de realidade", patente nas réplicas de Veneza e seus canais, nos pastiches da decadente Pompeia, nos Túneis do Amor, na arquitectura vazia de Dreamland e de outros lugares falsamente oníricos, feitos de papier maché e de miséria. Pairando sobre tudo isso, um tédio constante e morno, quase letal. "O tédio, que brota sob a pressão do indivíduo consigo mesmo, parece converter-se num lento círculo de agonia. Arrasta na sua dança melancólica dezenas de milhares de pessoas e varre-as, formando um monte abúlico tal como o vento varre o lixo das ruas", escreveu Gorki, o "amargo", sempre cáustico e azedo. "A vida é feita para pessoas que trabalham seis dias por semana, pecam no sétimo dia e pagam pelos seus pecados confessando-os e pagando pela confissão", acrescentou. Este desprezo pelas massas exprime bem o dilema do intelectual contemporâneo, que admira o povo em teoria, mas na prática tem por ele uma aversão profunda, arreigadíssima. Máximo Gorki, arauto dos bolcheviques, não se apercebeu de que aquilo que vira em Coney Island era, sem tirar nem pôr, a verdadeira ditadura do proletariado, como bem assinala o arquitecto Rem Koolhaas num livro dedicado a Nova Iorque Delirante. Ou, se quisermos, emergira ali, nos arredores de Manhattan, a rebelião das massas de Ortega y Gasset.
Temos hoje horror ao tédio. A nossa atenção e sentidos são permanentemente convocados, estimulados e titilados por um vendaval ininterrupto de notícias divertidas, vídeos engraçadinhos e outros excitantes palermas. Tudo é programado ao milímetro e ao segundo para impedir o ennui e para eliminar os pensamentos melancólicos do nosso espírito, cada vez mais infantilizado. A principal função do polegar oponível do Sapiens consiste agora em deslizar imagens patetas no ecrã de um smartphone. Nas praias e nos cafés, nos jardins ou nas ruas, tudo agarrado ao telemóvel. A toda a hora, de dia e ou de noite, levamos connosco uma Coney Island de bolso, muito portátil. Com isso evacua-se o tédio, decerto, mas perde-se também o seu enorme valor cultural e civilizacional. Sem falar no "ócio criativo", outrora muito apreciado nas melhores universidades inglesas, eram as tardes lânguidas da puberdade que levavam os adolescentes a ler. A ler horas a fio, sob o incentivo do tédio e da circunstância singela, mas decisiva, de não haver nada para fazer, absolutamente nada. Devoravam-se obras quilométricas, intermináveis mas fundamentais, que hoje amarelecem nas prateleiras, esmagadas pelo pó da ignorância e pela sujidade da desmemória. Para um teenager, entre a gratificação imediata de um like e a lenta e densa trama de Guerra e Paz a escolha é óbvia, irrecusável. Sem tédio, perdendo-se a capacidade de lidar com o tédio, é impossível aprender uma língua morta, estudar com afinco o latim ou o grego antigo, repetir à náusea os exercícios de violino ou harpa, gastar os dias a contemplar as nuvens do céu ou as avezinhas dos bosques. Não é por acaso que a Inglaterra, cinzenta e húmida, sempre foi grande terra de birdwatchers.
Matámos o tédio, muito bem, paz à sua alma. Mas, com essa morte, matámos também o que restava da nossa cultura humanista, baseada no livro e na leitura, na música dos planetas, no espanto da Natureza. Duvidam? Uma em cada cinco das livrarias registadas no Ministério da Cultura já não existe. Das restantes, apenas um terço reúne os requisitos para ser considerada livraria; e 40% dos livros ali expostos acabarão por ser devolvidos às editoras, por falta de compradores. Depois do tédio, as trevas.»
.
0 comments:
Enviar um comentário