«Aconteceu a 11 de Maio de 1997. Após uma derrota, uma vitória e três empates, Deep Blue, programado pela IBM, acabaria por vencer o sexto e decisivo jogo da histórica partida de xadrez contra Garry Kasparov. O xadrezista russo, incrédulo e abalado, não aceitou bem a derrota. Na verdade, dado o comportamento da máquina durante o jogo, protestou: algumas das suas jogadas acusavam intervenção humana.
Hoje, passados mais de 25 anos, o mais espantoso é que Kasparov tenha julgado possível continuar a vencer um computador que, já nessa altura, era capaz de analisar 100.000.000 jogadas por segundo. Ainda assim, não deixa de ser irónico que a sua derrota se tenha devido, como mais tarde se especulou, ao facto de Kasparov ter interpretado como estratégica uma jogada que resultara de um “erro informático”. Segundo Nate Silver, que conta a anedota em The Signal and the Noise, foi essa jogada, imperscrutável nos seus fins, que desconcentrou fatalmente o xadrezista.
O debate em torno da inteligência artificial (IA) está de volta. Porém, já não seria apenas devido à sua capacidade de cálculo que a máquina, em tempos de big data e deep learning, ameaça superar a inteligência humana. Veja-se o caso da empresa OpenAI. Com o Dall-E (um gerador de imagens) e o ChatGPT (uma caixa de diálogo), os usos da IA invadem os domínios da criação e do conhecimento. Num caso, um programa capaz de criar imagens à maneira deste ou daquele artista, ampliar as suas obras-primas, cruzar os seus estilos. Noutro caso, um programa capaz de produzir texto, reunindo, sintetizando e cruzando informação, em conversas informais com o seu utilizador. A incredulidade e a inquietação alastram. O orgulho humano está ferido... Não bastava a derrota de Kasparov? Querem agora destronar Vermeer, Beethoven, Kant?
Desengane-se, entretanto, quem julgue que as preocupações suscitadas por estes programas são meramente especulativas. Há-as também bem pragmáticas. Como lidar com a questão dos direitos de autor, quando estes abarcam obras mas não estilos? É legítimo reclamar a autoria de uma obra gerada parcialmente por algoritmos? Como evitar, nas escolas e universidade por esse mundo fora, que os estudantes façam “batota”? Como podem ou devem reagir os docentes ao uso desta tecnologia? Está o ensaio morto, como aventa Stephen Marche — num tom algo apocalíptico — num artigo recente publicado em The Atlantic?
Ciente de que o impacto da IA abrange a um só tempo os domínios do conhecimento e da criação, decidi fazer uma experiência. Propus, numa aula de Filosofia da Música dedicada à discussão do conceito de génio, a audição de uma peça sinfónica: nada mais nada menos do que a 10.ª Sinfonia de Beethoven de... 2021. Ouvíamos, portanto, uma composição gerada com o auxílio de um algoritmo a partir de fragmentos do compositor, que resultou de um projecto em que intervieram musicólogos, compositores e programadores, unidos no propósito de dar a ouvir o que poderia ter sido a derradeira sinfonia de Beethoven. Cabe a cada um julgar o resultado. Demasiado previsível? Aquém das nove sinfonias anteriores do mestre de Bona? Melhor ou pior do que a tentativa, com base nesses mesmos fragmentos, de Barry Cooper em 1988? Certo é que a composição “soa a Beethoven”.
No fim da aula, pedi aos alunos que redigissem um breve ensaio sobre este projecto, ensaio que viríamos a discutir aulas mais tarde. O meu propósito era duplo. Por um lado, aproveitando o reconhecimento da “similitude”, interessava-me desconstruir o mito do génio, na sua associação à ideia de “inatismo” e ao cliché da “inspiração”. Por outro lado, num movimento inverso, interessava-me mobilizar o conceito de génio, tal como Kant o apresenta na Crítica da Faculdade do Juízo, para problematizar o discurso em torno da “criatividade” da IA. Para Kant, a obra de génio, ao contrário das grandes descobertas científicas, não é redutível a regras. Não há cálculo que permite produzi-la ou explicá-la. É uma ideia forte que, à margem da retórica romântica da genialidade, ainda nos interpela.
Um algoritmo pode compor como Beethoven: pode, seguindo certas regras, instruções, padrões, emular o seu estilo. Mas não pode “errar” como Beethoven. Não pode entusiasmar-se. Não pode angustiar-se. Sobretudo, não pode não compor como Beethoven. Está condenado a imitar-se. Paradoxalmente, só Beethoven pode não compor como Beethoven. Só ele poderia hesitar e, prodigiosamente, desistir e arriscar — como quando, na Sonata para piano, Op. 110, de um impasse emerge, num piscar de olhos ao passado que se inclina para futuro, uma improvável e irresistível fuga.
A leitura e a discussão destes ensaios, que me conduziram a muitas outras questões para além daquelas que tencionava discutir, reforçaram em mim a convicção de que o ensaio não está morto. Por mais espantosos e úteis — sem ironia — que sejam os textos gerados pela IA, na sua capacidade de recolher, sintetizar ou organizar informação, quedam-se aquém de certas operações intelectuais, que se desdobram de forma individual e colectiva no campo das humanidades e que são, na passagem do diálogo à escrita, o coração do ensaio: o levantamento de hipóteses, a problematização de pressupostos, a busca de ângulos cegos, a construção de conceitos, a mobilização intempestiva da tradição, a escolha de casos emblemáticos, o reconhecimento de afinidades.
Se, contudo, o ensaio não está morto, morta está uma certa forma — escolástica, poeirenta, preguiçosa — de o praticar. Pois uma coisa é certa: com programas como o ChatGPT, deixa de haver desculpa para artigos, comunicações e aulas que se limitem a apresentar informação. Ironicamente, numa era em que as humanidades se encontram cerceadas na sua independência e na sua ambição pela lógica da produção e do lucro, não seria a menor das virtudes da IA a de as obrigar, em primeiro lugar, a reconhecerem a sua irredutibilidade aos positivismos de ontem e de hoje e, em segundo lugar, a assumirem a sua vocação crítica.
Num artigo particularmente lúcido sobre os usos da Inteligência Artificial, Marco Donnarumma defende que a Inteligência Artificial é em larga medida “soft propaganda” para a “ideologia da previsão” que domina o Norte Global. Não se trata de negar a utilidade da IA: na medicina, na engenharia e, certamente, na cultura. Trata-se — e uma coisa não impede a outra — de olhar criticamente para os pressupostos em que a sua valorização exacerbada assenta. Tudo seria calculável; tudo seria previsível; tudo seria controlável. Calcular para prever; prever para controlar — eis o projecto. Big data, deep learning e IA formam um sistema.
As inquietações em torno dos usos da Inteligência Artificial não são apenas consequência do avanço tecnológico desde os tempos de Kasparov. São também um sintoma do empobrecimento da compreensão do mundo, assim como do que significa a interlocução, a experiência e a inteligência humanas. Disso são também as ciências sociais e humanas vítimas. Veja-se a quantificação da pesquisa, a redução do qualitativo ao quantitativo, a tónica na produtividade, o devir-empresa da universidade, a privatização do conhecimento. Mas a resposta não pode ser meramente defensiva. A importância das humanidades não é uma herança. É — pode e deve ser — uma conquista.
A inteligência humana é plural: matemática, espacial, emocional... E se há uma inteligência cara às humanidades é a inteligência crítica. Devemos-lhe, desde logo, o reconhecimento de que há várias inteligências. Tal como lhe devemos a compreensão de que com o reconhecimento da pluralidade das inteligências se abre a discussão sobre os seus usos, os seus fins e o seu valor. Nesta discussão, em que nenhuma calculadora pode fazer toda as contas, cabe também às humanidades ensaiarem uma visão menos preconceituosa, mas nunca menos atenta ou crítica, acerca da tecnologia.
De algum modo, cometemos um erro inverso ao de Kasparov. O erro de atribuir à máquina, na sua insuperável capacidade de cálculo, um tipo de inteligência que ela não possui. Apontamos-lhe o dedo indignados. Distraímo-nos... E logo quando devíamos estar mais concentrados no jogo.»
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