31.3.19

A Zippy, o Brunei e os sagrados corações



«No mesmo mundo em que nesta semana o Brunei muda a lei para começar a lapidar até à morte homossexuais e adúlteras, no Facebook português assistimos a uma flash mob na página da marca de roupa Zippy por causa do lançamento de uma linha ungendered, ou seja, "sem género", para crianças, com acusações de "agenda LGBTI", "erotização das crianças", "ativismo radical", "tentativa de mudar a biologia" (juro) e desmaios perante a hipótese de "pôr meninos a usar saias" (não sendo o caso da coleção, estranha-se que gente que se arroga "da família" não tenha em casa fotografias de antepassados; basta recuar umas décadas para constatar que neste mesmo hemisfério e país - obviamente noutros, e sem ser preciso lembrar os padres, há homens que usam saia diariamente - meninas e meninos usavam vestidos e não consta que tenha havido drama por isso).

A coincidência destes dois acontecimentos é tanto mais interessante quando a mob que ataca a marca de roupa o faz na perspetiva da vitimização, alegando que a existência daquela coleção é um sinal de uma "ofensiva" - a terrível ofensiva daquilo a que chamam "ideologia de género" e que, já se sabe, "quer destruir a família". Não é demais sublinhar que num mundo em que a verdadeira ideologia de género - aquela que visa impor rígidos papéis de género a raparigas e rapazes e uma única orientação sexual, a hetero - literal e ostensivamente mata, existem almas a, sem pudor, atribuir a quem combate essa ditadura intuitos persecutórios e exterminadores.

Há mesmo alguém, entre aquelas dezenas de comentários furibundos, que escreve: "Não nos vão impedir de pensar como Deus."

Esta extraordinária frase, que mereceria por si só uma monografia, tem tanto de potencial cómico como mortífero. Se o comum é que quem crê na existência de uma divindade lhe atribua, para além de omnisciência, uma autoridade indisputada e total sobre tudo, aqui vemo-nos perante a arrogância de se dizer que não só se conhece o pensamento da divindade como que se é seu legítimo intérprete - e portanto agente, ou mão de deus. Tal qual os governantes do Brunei ao decretarem a morte - e a morte pela multidão, pública, lenta e o mais dolorosa possível - a todos os que infrinjam aquilo que ditam ser contrário ao "pensamento de Deus".

É portanto esse "pensamento divino" que determina quais as "condutas sexuais corretas", logo "naturais". E é por serem errados e portanto antinaturais, e terem de sofrer por isso, mas também por constituírem uma espécie de potencial contaminante dos "corretos" que os homossexuais e as adúlteras têm de ser apedrejados até morrer; porque a forma horrível e espetacular como serão exterminados, simbolizando a repugnância castigadora da divindade, deve ser um exemplo para todos. Claro que, perante este raciocínio, ocorre perguntar: se há os "naturais" e os "não naturais", de onde vêm, senão da "natureza", os segundos, e porque é que é preciso fazer deles exemplo? Será que quem o faz acredita que se não assustar os "naturais" eles se convertem ao "não natural"?

Deste lado do mundo, a perspetiva que anima a pequena multidão de arremessadores de pedras à marca de roupa é igualmente paradoxal: não basta que, num mercado com múltipla oferta, não comprem para os seus filhos, sobrinhos e netos; a linha de roupa tem de ser exterminada porque é um exemplo perverso, um contaminante, um vírus, um perigo à solta. Não se pode deixar aquela roupa existir e é mesmo preciso exigir à marca abjuração, de baraço ao pescoço: "Um pedido de desculpas e defenderem publicamente a família matriz judaico-cristã no mínimo", reclama uma das comentadoras.

O paradoxo é totalmente exposto neste outro comentário: "As crianças nascem rapazes e raparigas, e não vai ser uma moda estapafúrdia que vai mudar a biologia, a ciência e a evolução antropológica do ser humano." De facto, do ponto de vista de quem considera que tudo é regido por um ente superior e que existe uma separação intransponível, biológica e divinamente determinada entre raparigas e rapazes, não faz o menor sentido achar que "uma moda estapafúrdia" mude alguma coisa. Que raio de deus ou natureza se deixaria derrotar por calções e T-shirts coloridos ou um logo com um arco-íris? Que deus ou natureza precisa de um índex de roupa, de lapidações e de terror, de toda uma máquina repressiva e excludente ou seja, de cultura -, para se impor?

Nem de propósito, nesta mesma semana um colégio católico, o do Sagrado Coração de Maria, anunciou no Facebook um ciclo de debates para alunos do secundário com quatro perguntas. Todas merecem análise, mas o espaço e o tema implicam relevar esta: "Será que nascemos geneticamente gays ou é algo que resulta de uma conjuntura externa?"

Devido à polémica, o post foi retirado; o colégio veio depois explicar que as perguntas tinham sido formuladas de "forma extremada" com base em "problemáticas de atualidade". Ora os únicos círculos em que a origem da homossexualidade é uma "problemática", e "de atualidade", são aqueles nos quais, precisamente, a homossexualidade é problemática e portanto há quem se preocupe em perceber de onde vem e porquê - e como, claro, pode ser "debelada" ou "curada". Sem se dar conta de que fazer esta pergunta expõe a verdadeira dúvida: "Será que nascemos geneticamente heterossexuais ou é algo que resulta de uma conjuntura externa?" Porque é isso que realmente esquenta estas cabeças, ou jamais se preocupariam com linhas de roupa ou ações de educação para a igualdade protagonizadas por jovens LGBTI nas escolas. O seu terror é que se deixarem as crianças em paz - se lhes derem liberdade e as deixarem pensar pelas suas cabeças - elas sejam o que quiserem. É o que se chama, creio, uma crise de fé.»

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