14.9.20

“Pois Luís Filipe Vieira é homem honrado”

«Calma, concidadãos. Não venho aqui dizer se Luís Filipe Vieira é homem honrado — ou se não o é. Nada direi do que não sei. Sei apenas que sobre ele impendem suspeitas de ter tentado interferir com o curso da justiça; que dele se diz ter sido um daqueles enormes devedores ao Banco Espírito Santo cujos incumprimentos estamos todos a pagar agora. São casos de que a justiça dirá, não eu. 

Sei outra coisa: que quando escrevo, em título, que “Luís Filipe Vieira é homem honrado”, todos aqueles de entre os leitores que não se riram esbugalharam os olhos de espanto. E entre esses incluem-se muitos benfiquistas (como eu, aliás). O mesmo sucederia se eu escrevesse “pois Jorge Nuno Pinto da Costa é homem honrado” ou “pois o mundo do futebol é mundo de homens honrados” porque, a bem ou a mal, ninguém consegue esticar a sua credulidade a tal ponto. E no entanto, o nosso primeiro-ministro António Costa, como eu adepto do Benfica, ao aceitar integrar a Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira à sua recandidatura a presidente do Benfica, está a dizer-nos isso mesmo: que Luís Filipe Vieira é, em seu entender, homem honrado. E está a dizê-lo quando a pergunta sobre a honradez de Luís Filipe Vieira está ainda — para ser generoso — em aberto e, se respondida na negativa, arrisca-se a arrastar consigo quem tenha atravessado a sua honra em nome da honradez de Luís Filipe Vieira. Ainda para mais quando se é primeiro-ministro, chefe do poder executivo, numa altura em que é ao poder judicial que compete saber o que se possa saber sobre este tema. 

Há uma peça de Shakespeare, Júlio César, que tenho estado a pilhar desavergonhadamente desde o início desta crónica, na qual um discurso famoso — por ironia commumente conhecido como o “Monólogo de António” — nos diz tudo o que há para saber sobre estas coisas. A Marco António — o António do monólogo — é dada a possibilidade de discursar no funeral de Júlio César, desde que não diga mal daqueles que o mataram. António decide então fazer o contrário: dizer bem deles. “Brutus”, diz ele, “é homem honrado”. Se Brutus justifica que foi preciso matar César, assim deve ser, diz António (o deles), “pois Brutus é homem honrado”. E se Cássio, e Casca, e todos os outros, estiveram com Brutus, António não tem nada a dizer, “pois Brutus é homem honrado, e assim são eles todos, todos eles homens honrados”. Tantas vezes repete António que eles são homens honrados que o seu discurso tem o efeito contrário, acabando por virar a multidão contra aqueles de quem ele veio falar bem. 

Assim levam descaminho estas coisas. António (o nosso, o Costa, o da República Portuguesa) não monologou. Pelo contrário; foi mais lacónico que retórico, limitando-se a dizer que a opção de fazer parte da Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira não tinha “rigorosamente nada que ver” com o cargo que ele ocupa, pressupondo-se que tenha apenas que ver com o facto de ele ser adepto do Benfica (como eu, como eu). O problema é que o nosso António se esqueceu daquilo que o António (da Roma republicana) veio salientar no seu monólogo. 

Emprestai-me a vossa atenção. Uma das questões principais do Júlio César de Shakespeare está na tensão entre República e amizade, lealdade e liberdade, ética e política, racionalidade e sentimentos. A lição de Shakespeare em Júlio César não se aplica tal qual ao caso atual. Como tantas vezes quando comparamos Antigo com o Moderno há elementos que parecem inverter a sua polaridade. Mas, grosso modo, podemos dizer que de um lado deste debate estão aqueles que fazem uso do chavão “a ética republicana é a lei” — e nada mais. Se Luís Filipe Vieira é inocente até prova em contrário, se toda a gente tem direito a ser adepto de um clube, então sim, como diz António Costa, este assunto não tem nada a ver com política. 

Do outro lado estão aqueles que não conseguem mais tapar o sol com uma peneira. Que estão fartos das ligações entre política e futebol. Que não conseguem acreditar na honradez dos “homens de futebol” a não ser quando se lembram que uomini d’onore — homens honrados — era precisamente o que os mafiosos chamavam uns aos outros. Que estão cansados de pagar as dívidas do Bando Espírito Santo e do Novo Bando — ups, escapou-me a tecla, queria escrever Banco —, aquelas mesmas que Luís Filipe Vieira não pagou. E que esperavam que o primeiro-ministro em particular, pelo mal que todos esses assuntos têm feito à vida nacional, mantivesse uma saudável reserva e não se esquecesse que nem à mesa de café deixa de ser primeiro-ministro, como aliás aconselhou aos seus ministros. 

Diz António, o dos romanos, falando de homens públicos: “o mal que fazem sobrevive-lhes; o bem é enterrado com eles”. A displicência de um Primeiro-ministro com temas destes pode deitar a perder todo o bem que tenha feito durante anos, ainda para mais quando uma das poucas qualidades que todos reconhecem no líder do maior partido da oposição é, enquanto político, nunca se ter metido em futebóis. 

Por coincidência, os romanos trocavam de governantes nos Idos de Setembro. Que, por acaso, calhavam a 13 desse mês, exatamente o dia em que escrevo esta crónica. Cuidado, António Costa. Cuidado com os Idos de Setembro.» 

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