19.2.21

Extravio de vacinas no país real

 


«Assistimos todos ao folhetim da vacinação indevida em horário nobre. Uma autarca descrita como mais avantajada furou a fila em Portimão, logo seguida por outros no Seixal, Arcos de Valdevez e Reguengos de Monsaraz. A Segurança Social de Setúbal atirou vacinas a todos os funcionários que as conseguiram apanhar. Na Associação de Farminhão, a responsável da cozinha ainda aproveitou uns restos. Nem a igreja resistiu à tentação, com relatos de padres inoculados em várias paróquias. Mesmo com os custos da insularidade, o movimento chegou aos Açores, na pessoa da diretora regional para a Promoção da Igualdade e Inclusão Social. No Porto, por aparente falta de comparência dos seus destinatários, 11 doses já preparadas acabaram na pastelaria ao lado das instalações do INEM.

O país, com razão, inquietou-se. Quando a escassez de vacinas é assunto diário, cada picada num braço não prioritário implica a desproteção de uma pessoa de risco. Pelo caminho, as suspeitas atingiram o próprio dirigente da task force, prontamente substituído por um militar que vestiu um camuflado para ir à televisão sinalizar o fim da rebaldaria. A Direção-Geral da Saúde regulou enfim o destino das sobras, determinando o seu aproveitamento segundo as regras da prioridade. Dado a legislação vigente só permitir sancionar funcionários do Estado ou equiparados, o PSD e o Chega apresentaram propostas de lei para a introdução de um crime autónomo com penas que vão, respetivamente, até três e cinco anos. Sem pôr em causa a rigorosa investigação da conduta de quem, em plena pandemia, consegue ficar imunizado antes da sua vez, criar legislação penal deste calibre em pura reação ao alarme social não me parece cumprir os requisitos da boa legística.

Pese embora a descrição do fenómeno como típico do chico-espertismo nacional, há vacinas extraviadas noutros lugares. A clientela abastada de um conhecido hospital privado parisiense está sob suspeita. Depois do anúncio da inoculação da mais famosa instrutora de spinning de Manhattan, o título no “The New York Times” era ‘Don’t hate the soulcycle celeb who got the vaccine. Hate the system’. Lá fora, o problema está no privilégio dos mais ricos; por aqui, no lugar de vacinas VIP, tivemos um retrato do país real do pequeno nepotismo e do compadrio local. Pelos vistos, a recém-adquirida imunidade por um obscuro provedor da Santa Casa da Misericórdia tem mais impacto mediático do que a vacinação da presidente do grupo Luz Saúde, impecavelmente penteada.

Enquanto vociferamos contra o sistema, talvez questionar em que medida contribuímos no passado para a sua instalação. Telefonemas e inscrições em listas andam a desviar vacinas por todo o território continental e ilhas porque, em Portugal, o “contacto certo” funciona rotineiramente como forma de obter um benefício em detrimento dos outros. A memória dos casos começa a esbater-se e o mais provável é acabarem todos algures nos meandros de mais uma série de inquéritos. Não sendo a situação mais censurável, a distribuição de sobras pelo INEM no estabelecimento comercial mais próximo pode bem ser a que vai ficar mais tempo no imaginário popular. Demasiada gente já foi um dia a prima do presidente da junta e ainda tem a esperança de ser a costureira da mãe do senhor prior. Daí a nossa perplexidade perante esta decisão de vacinar aleatoriamente quem está ali mais à mão sem que ninguém se tenha lembrado, antes, de usar o telemóvel para marcar um número — que até podia ser o meu.»

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