12.3.21

A política Nem-Nem

 


«Numa entrevista ao PÚBLICO, publicada no dia 4 de Março, António Costa teve o seu momento Nem-Nem amplamente citado e comentado. Foi quando disse: “Nem André Ventura nem Mamadou Ba representam aquilo que é o sentimento da generalidade do país”. O Nem-Nem é, aqui, a marca linguística da ponderação. “Ponderar”, do latim ponderare, significa “pesar”. É o que faz o nosso primeiro-ministro, numa operação de retórica balanceada, isto é, ponderada: coloca pesos e contra-pesos nos dois pratos e, com a exactidão do fiel da balança, arbitra sobre o que ele entende ser o maléfico equilíbrio dos extremos. Em nome do “sentimento da generalidade do país”, procede a uma dupla exclusão. É esse o gesto justo, isto é, ponderado, de um grande equilibrista Nem-Nem.

O seu a seu dono: devo esta categoria a Roland Barthes, que numa das “mitologias”, define uma crítica “Ni-Ni” como uma “doutrina” que encerra sempre um juízo moral e revela um “traço pequeno-burguês”. Escusado é dizer que tal designação, “pequeno-burguês”, já só a encontramos no baú das velharias. Sempre que a desenterramos, enchemo-nos de pó, mas ao mesmo tempo experimentamos uma satisfação que deve ser semelhante ao espanto dos arqueólogos.

Em vez de “pequeno-burguês”, que evoca ideias e figuras que já não fazem parte do mundo em que vivemos, por muito que gostássemos de restaurar ao menos o traço semântico do tédio que lhe estava associado, podemos talvez dizer “homem médio”. Sai Roland Barthes, entra Pasolini. Só muito parcialmente, porque não é exactamente o homem médio execrado por Pasolini que podemos reconhecer no Nem-Nem de António Costa. Colocando-se no centro de gravidade da nação, o primeiro-ministro sentiu-se no poder de resumir todas as forças vivas do corpo nacional (“o sentimento da generalidade do país”), tal como o centro de gravidade é capaz de concentrar num ponto todos os pesos diferentes. Este homem de pesos e medidas que indicam o grande equilíbrio Nem-Nem não é uma figura da mitologia pequeno-burguesa (demasiado anacrónica), mas também seria exagerado vê-lo como um agente do apocalipse, à maneira daquelas visões tremendas que Pasolini tinha da sua época e do papel central que nela desempenhava o “homem médio”. Não, se quisermos perceber o homem médio de feição costiana, o homem que, medindo o peso de uma embaraçosa dicotomia opta pela moral do terceiro e diz que aí reside o centro de gravidade do país, devemos remontar a uma teoria do homem médio, tal como ela foi formulada por um matemático, especialista de estatística, astrónomo e sociólogo, o belga Lambert Adolphe Quételet (1796-1784; Quételet ficaria fora do meu alcance, e não pretendo exibir uma erudição que não tenho, se não o tivesse encontrado referido no livro de um matemático e ensaísta francês, Vivre et penser comme des porcs, que tinha horror à mediania e à conformidade, chamado Gilles Châtelet). Para Quételet, homem da estatística e não das balanças, há uma excelência da média enquanto tal, seja ela da ordem do Bom ou do Belo. Na formulação de António Costa, a média diz-se de outra maneira; é o “sentimento geral do país”.

O pequeno-burguês entediante e modesto de Roland Barthes é um estereótipo de certas representações políticas e sociológicas de uma época que já não é a nossa; e o homem médio cretino e responsável pelo fim do mundo (ou, pelo menos, do fim de um mundo) de Pasolini também já não corresponde ao imaginário actual dos fins. Por isso, temos de ver no homem médio de Costa, um ideal implícito no seu expediente retórico do Nem-Nem, uma outra espécie de homem médio, muito mais próximo da concepção estatística de um “sentimento” nacional. O homem médio em que Costa se revê e que lhe inspira a operação retórica do Nem-Nem fornece um ponto de apoio para buscar o consenso conservador, para eliminar qualquer posição crítica radical (e é preciso acrescentar que radical não é mesmo que extremo, apesar de encontrarmos hoje, em muitos discursos, essa equivalência), para deixar que o pragmatismo siga o seu curso, sem obstáculos. E assim nos vamos todos entediando, com o Nem-Nem de políticos fatigados e ponderosos, realizando a grande missão de equilibristas.»

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